sábado, 18 de julho de 2009

É abril e ganhei um cravo de lã!

26 de abril de 2009... o cheiro de Lisboa de novo, após uma histórica noite mal dormida no querido - embora apertado - avião da TAP. Sou boa de poltrona, mas dessa vez foi duro de verdade. A aeronave era mais moderna que a de dois anos atrás; tinha até tela exclusiva de cinema na minha frente, mas... ai! Minhas pernas não cabiam direito em nenhuma das alternativas disponíveis para eu me situar no espaço da poltrona. O resultado foi uma sucessão de cochilos sem-vergonha, mas aquele sono gostoso, que relaxa e descansa, não chegou mesmo.

Mas havia Lisboa à minha espera, e tudo valia a pena.

Amália, o filme, foi o presente da noite, na tal telinha exclusiva. Excelente, dramático, forte. Como é que arrumaram uma atriz tão boa e tão parecida com a Amália, eu não sei. Mas entre os fados, a bela fotografia e a produção de primeira, aprendi mais um pouco sobre aquela mulher tão extraordinária e tão capaz de, de fato, encarnar o seu país.

Em terras firmes lusitanas, manhã já alta, espera longa na fila para pegar as malinhas gêmeas, azuis e com seis rodinhas, que comprei especialmente para a aventura européia 2009. Numa delas amarrei o cravo de lã que, em homenagem ao 25 de abril, a companhia aérea me enviou junto com a passagem. Minha mala média, vermelha, tinha sido parte da fatura dos meus pecados em 2007; parecia crescer a cada trecho da viagem. Era insuportável trafegá-la de um lado para o outro! As pequenas, então, prometiam. E cumpriram: andavam sozinhas ao meu lado, eretíssimas, sem que eu tivesse de fazer esforço algum além de empurrar o suporte. Pena que a linda bolsa de mão, com a frente toda em camadas de couro bege, escorregasse sempre do meu ombro e vivesse às turras com a mochila do laptop... paciência. Quem tem alma de retirante nunca perde a trambolhagem...

Quando finalmente assomei à porta de saída, a Vera estava à beira de uma síncope. E por culpa minha, tal o medo - que lhe infundi - de que pudesse vir a cair nas garras desavisadas da xenofobia que tem acometido as alfândegas européias, e da qual os brasileiros têm sido alvos fáceis. Claro que tinha tudo o que o chamado "espaço Schengen" exige para alguém entrar lá: mínimo de 40 euros para cada dia de viagem, seguro-saúde, endereço fixo (o dela), termo de responsabilidade (assinado por ela) ... mas nunca se sabe.

A longa, desconfortável e sinuosa fila de espera para passar pela Imigração parecia não ter fim: todos de pé por horas, crianças, idosos, deficientes, mulheres grávidas. Dentro da mais perfeita lógica portuguesa, todos os aviões procedentes do Brasil e da África - e são incontáveis! - chegam rigorosamente no mesmo horário. Os passageiros, obviamente, são uma enormidade em relação ao número de atendentes.

Do meu lado vi uma criança de uns nove, dez anos, empalidecer progressivamente, até que a mãe gritou e a família foi resgatada da fila para um atendimento especial. Foi então que vislumbrei uma moça gravidíssima e avisei a atendendente, que tomou providências.

Foi o primeiro momento em que atentei para um tema do qual tratarei mais amiúde por aqui: a síndrome de primeiromundismo que acomete muitos brasileiros que fazem questão de diminuir a terra-mãe. Se aqui no Brasil até em supermercado tem fila para "idosos, gestantes, pessoas com necessidades especiais", por que é que na Imigração portuguesa não tem? Pois acreditem, não tem!

Vera chorou de alívio ao me ver. Vera é um delicioso paradoxo de gente: despachada, decidida, prática, resolvida... mas chora quando abraça uma velha amiga. Adoro isto! Adoro tê-la de volta em minha vida e poder retornar, de vez em quando, àquele mundo que construiu com a dedicação típica do seu caráter e talento.

No caminho de casa, foi me atualizando sobre tudo e todos. Pouco mais tarde, teria um delicioso primeiro dia da velha rotina do bairro de Santos.

Mas isto conto outro dia.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Meu novo ídolo

Pessoal, quero que conheçam o meu novo ídolo: Bruno Aleixo, o personagem de humor que está revolucionando o gênero em Portugal e por aqui também.

Criado pelo trio de jovens humoristas João Moreira, Pedro Santo e João Pombeiro, o Aleixo é uma crítica contundente às paranóias urbanas e à xenofobia. Mal-humorado, politicamente incorreto, Bruno a plêiade de personagens que o acompanham é uma prova da vitalidade cultural de uma garotada que, longe de ser alienada, está ligadíssima nas transformações que o nosso mundo exige.

Deixo aqui um dos capítulos da série "Bruno Aleixo na Escola", que mostra que a criaturinha já era fogo na roupa desde a infância.

Bruno Aleixo tornou-se um must a ponto de ganhar um programa só seu, na emissora portuguesa Sic Radical, dedicada ao público jovem. De um começo tímido na internet, com uma história propositadamente obscura e cheia de lacunas, Bruno é dado a conhecer pela série "Os conselhos que vos deixo", presumidamente póstuma; pouco tempo depois, com a série "As mensagens que deixo pra você", gravadas diretamente do Rio de Janeiro, dá-se a entender (como sempre, tudo tem uma nebulosidade calculada e interessante) que ele teria simulado sua morte e fugido para o Rio de Janeiro. (Explica-se: um dos autores, João Moreira, é filho de uma brasileira, tem família por aqui e curte o nosso clima).

Mais tarde, ao ganhar o seu programa, Bruno aparece de cara nova e, em conversa com seu amigo Busto (um busto falante de Napoleão, hilariante), afirma que "teve problemas com uns americanos, o George e o Lukas", embora o Busto insista em que ele teria feito uma cirurgia para mudar a cara por causa de um queixo duplo. Na verdade, em suas primeiras versões, o Bruno - que não se sabe se é bicho, gente, mutante ou o quê - foi caracterizado como um "ewok". Por isso é que o George e o Lukas ficaram bravos (leia-se o diretor americano George Lukas, criador e detentor dos direitos da série "Guerra nas Estrelas").

Vejam com seus próprios olhos quem é o Bruno Aleixo! E sintam a força do renovador humor português!

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Portugal no Natal

Ah, se Belém fosse em Portugal...
(cartão-postal tomado emprestado do blog Aldeia de Gralhas)

Minha amiga Vera Matagueira, brasileira e carioca, emigrou pra terrinha faz quase meio século e diz que não pode mais imaginar um Natal no calor. É... pra quem passou a vida colocando algodão nos galhos da árvore de Natal para imitar neve, como é o meu caso, a idéia de um Natal no Pólo Norte parece algo distante, ainda que as imagens façam parte do todo da memória natalina.
Em Lisboa, meu amigo Tiago Videira sente frio; o aquecimento central do moderno prédio onde mora está preso em intermináveis obras e o miúdo, que é magrinho, afunda-se em agasalhos e mantém um aquecedorzinho doméstico aos pés. O Ramiro, que além de amigo é meu mais recente parceiro literário, foi passar as festas em Avis, sua terra natal plena de tradições.
Teresa, uma portuguesa arretada (se é que isso existe) que vive aqui há mais de 30 anos, ainda faz Bolo Rei com prenda e tudo, enquanto em Portugal, o excesso de zelo da fiscalização sanitária proíbe oficialmente a tradição. Ramiro, aborrecido com esses desmandos politicamente corretos, afirma que o famoso leitão à Bairrada também anda "proibido" pelos mesmos motivos.
Uma das coisas que mais me encantam no Portugal "de dentro", aquele das estradas vicinais estreitas que margeiam delicados olivais, é a capacidade de parar o tempo. Recorda-me aqueles livros antigos, com desenhos a bico-de-pena de pastores, ovelhas e crianças de calções com suspensórios e meninas de lencinho na cabeça, exatamente como os do postal acima. Adoro isso; num território relativamente pequeno é possível estar entre o ano 300 a.C e o século 21. Os lugares são bonitos, a gente é doce e sincera na maior parte, é uma estranha sensação de estar em casa sem estar.
Não conheço o Natal português, mas sei que não tem castanhas; essas estão reservadas para o dia de São Valentim (perdão, Cris, São Martinho). Sei também que a mesa é farta e bem posta, com muitas cores e segredos culinários que normalmente não conhecemos. E que as tradições católicas da nossa infância ainda ocupam lugar de destaque em muitas partes.
Não vi as vitrines, mas sei que há uma árvore prima-irmã da nossa - a da Lagoa, que tanto faz sonhar. Registre-se aqui que a tecnologia é importada do Brasil, mas afinal, grande parte do sangue é o mesmo, apesar de sermos nós os campeões da miscigenação que dá cor e sabor à nossa vida.
Sei que a Cris, em Figueira da Foz, a Soraia e o Tiago no Porto, o Pedro em Braga, a Silvia em Guimarães - e em Lisboa o Jorge e a Rita, o Vicente e o Francisco,
a Paula, o Marco, a Vera Matagueira, o Faria e a Sandra, a Ana, a Carla, a Isabel, o Orlando, o Nuno, o Tiago Videira, a Vera Silva, o João Paulo com a esposa e a filha, a Milocas e o João, estão todos curtindo hoje o chamado "enterro dos ossos" - o almoço do dia 25, onde a ceia da véspera ainda reina absoluta. Já em Portugal as sobras do dia seguinte atendem pelo nome de "roupa velha".
Daqui do calor e apesar das chuvas, mando o meu mais caloroso abraço a Portugal e aos lusos que mandam no meu coração, no Natal. Queira Deus que em 2009 eu possa estar por lá mais uma vez!

domingo, 7 de dezembro de 2008

Meu caro Jorge (que ano!!!)

Capa do DVD de Jorge Palma - Cortesia: Blogue Palmaníaco

Como tão bem diz o João Pedro Pais em sua música-homenagem, Meu caro Jorge (Palma), que integra o cd "A Palma e a mão" e dá título a este post, o cavalheiro aí em cima tem mesmo uma força desmedida. Força na presença, na atitude, na maneira de ser. E, claro, nas muitas canções que parecem ter sido feitas para acompanhar a nossa vida.

Bem, posso dizer que chequei quase há pouco, se pensarmos nos 30 e tal anos de carreira do Jorge Palma. Costumo brincar (e ele dá boas risadas!) que "me deve 30 anos", pelo menos, de presença no meu imaginário. Tento recuperar, claro, mas nem tudo o que é vivido "depois" terá o mesmo sabor...

Mas o nosso Jorge Palma, que bom!, teve um 2008 incrível. Com o "Encosta-te a Mim" bombando, trabalhou como nunca, fez zilhões de concertos Portugal afora, gravou seu primeiro dvd, conquistou o Globo de Ouro português como melhor intérprete individual, lotou Coliseus e Campos Pequenos que são enormes (coisas de Portugal, claro). E há poucos dias casou com a Rita em Las Vegas, com as bênçãos de Elvis Presley! Quer melhor, em se tratando do Bob Dylan português???

Pois tem mais. No último dia 4, foi lançada sua primeira biografia em livro, de autoria do jornalista João Pedro Teixeira. Digo em livro porque na Wikipédia já existia uma brilhante cronologia escrita pelo musicólogo Tiago Videira, que analisou a fundo a obra jorgepalmiana depois de quase um ano de entrevistas e acompanhamento de suas turnês regionais, numa não menos brilhante monografia (ainda inédita) de conclusão de curso intitulada "Jorge Palma, um artista marginal".

A nova biografia tem, como um bônus especial, um interessante mergulho familiar que passa pelo meu país, o Brasil, e que nunca tinha antes sido mencionado. Jorge Palma tem quatro irmãos que vivem aqui: os dois mais velhos nasceram em Portugal, mas os dois mais jovens são brasileiros mesmo. O pai emigrou para cá na década de 70 com a segunda mulher, Teresa - por sinal grande amiga do Jorge de toda a vida - e os dois filhos então pequenos, Maria João e Miguel. Anos depois casou-se pela terceira vez, com a brasileira Leila - e teve mais dois filhos, Mário Gustavo e Laura. Quase todos os irmãos Palma vivem no Estado do Rio, em Saquarema e Campos, com exceção de Maria João, que ao casar-se foi viver em Caxias do Sul.

O ano de Jorge, rico em sucesso, experiências novas e mudanças positivas, veio confirmar e ampliar a dimensão de tudo aquilo que ele já significava para a música portuguesa. Aclamado por fiéis seguidores da sua geração e por um público impressionantemente jovem, que se sente retratado em suas músicas, ocupou e vem ocupando, com toda a justiça, a sua cadeira cativa de unanimidade nacional.

E por que não dizer internacional? Sim, porque o Brasil ainda não sabe, mas sente muita falta dele por aqui.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Groucho à portuguesa

Tetê, a caráter - Foto: Arquivo familiar

A boa Milocas não tinha idéia do que a esperava naquela tarde pacata em Lisboa, quando a amiga Lena chegou para um chá tão prometido quanto inopinado.
- Ó Milocas, acho que passo por aí hoje à tarde para tomar aquele chá que combinamos outro dia, não te lembras?
Lembrava-se, claro, mas na verdade estranhou que fosse já para aquele dia.
- Está bem, Lena, então te espero. Por volta das três?
- Pode ser, pode ser.
A Milocas tratou de arrumar as guloseimas, alguns tipos de chá, leite, café, uma ou outra geléia feita em casa e, à hora aprazada, ouviu a campainha. Recebeu a Lena com toda a festa, mas não deixou de observar no rosto da velha amiga uma certa excitação, mais ou menos como uma criança que acabou de fazer arte.
- Mas o que é que tu tens, mulher? Parece-me um tanto excitada...
- Pois estou, claro que estou - tentou disfarçar Lena. - Que trânsito para chegar aqui, tu nem imaginas! Esta cidade está uma confusão. Eu até gostava de um copo d'água...
Milocas foi buscar. Pouco depois as duas já se entretinham em botar as novidades em dia.
- Mas e a tua irmã lá no Brasil, tem notícias dela? - perguntou distraidamente a Lena.
- Ah, falo com ela todos os dias - disse Milocas. - Hoje é que não consegui, pois afinal ela estava com visitas. Esse negócio de internet é uma maravilha; nem nos telefonamos mais! Só dou um toque e ela já sabe que sou eu; então desligo e vamos as duas para o Skype.
- Que ótimo! Eu também uso muito, é tão simples... E o som é perfeito, parece que a pessoa está mesmo aqui - ajuntou Lena, disfarçando com habilidade um olhar furtivo em relação à porta. Praticamente a seguir ouve-se a campainha.
- Estás esperando alguém? - indagou a Lena, com ar ausente.
- Pois não! Quem poderá ser? Ó Marques! Podes atender, se faz favor? - dirige-se Milocas ao marido.
Marques vai à porta. Cada passo seu é engenhosamente acompanhado por Lena, com o rabo do olho, entre um gole de chá e um biscoitinho amanteigado.
Um instante compridíssimo parece paralisar a cena. Milocas alonga as palavras, Lena estica o tempo de sorver o chá, a mão do Marques demora a alcançar a fechadura.
- Quem é, Marques?
- É para você, Milocas.
A contragosto, a anfitriã deixa a visita no sofá e segue até a porta, onde enormes óculos redondos, um nariz descomunal quase à Groucho Marx e um bigode de pontas retorcidas a contemplam, dentro de um sorriso de plástico. Fica confusa.
- Quem é? - Milocas estuda a figura feminina à sua frente, desconfiada e incrédula. Conheço mais ou menos este cabelo, mas pela altura não dá para saber, lembra-me alguém, tem algo da minha irmã, mas quem será esta, os pensamentos correm em volta de um silêncio atônito e da máscara diante de si.
- Mas então tu não me conheces mais, Milocas? Sou eu, a tua irmã!
O sangue lhe foge do corpo, mete-se lá não se sabe onde. Tudo lhe passa pela cabeça, ela custa a juntar alhos com bugalhos, e de repente sente os joelhos dobrarem. Se não fosse pelo Marques, que a enlaça no instante fatal, teria desmaiado bem à antiga.
- Mas como é que podes estar aqui, se há pouco estavas com visitas lá no Brasil? - debate-se Milocas entre o fato e a versão do fato.
No sofá, Lena mija-se de rir. Recobradas a cor e a pulsação, Milocas já pode controlar os joelhos e senta-se para ouvir toda a pantomima.
- Mandei minha nora entrar no Skype para te dizer que estava com visitas - diverte-se Tetê, a bem-humorada irmã, bem abrasileirada pelos anos à beira-mar, no litoral de Saquarema.
- Mas onde é que arranjaste isto? - aponta Milocas para a máscara.
- Ah, no meu aniversário recebi os meus convidados assim - conta Tetê, entre risos.
E tome que tome chá, biscoitos, abraços e beijos de anular saudades. Agora é a vez da Milocas de aprontar das suas: telefona à Laida, outra amiga e vizinha, e a convida para dar um pulinho lá.
- Está aqui a Lena, estamos tomando um chá, venha ter conosco!...
Laida concorda e, ao chegar, a mesma cena se repete: confusão, dúvida, surpresa e gargalhadas. Laida gosta tanto da novidade que resolve chamar também o seu marido, alegando que não quer voltar sozinha para casa. Casmurro, o marido concorda em ir buscá-la mas não quer subir. Ah, mas ela insiste. Como insite! E quando ele chega, a mesma cena e muitas gargalhadas mais. O chá entra pela noite, brotam bolinhos salgados e até um vinho para coroar a festa. A única que a Tetê não conseguiu pegar foi a sobrinha Isabel; alertada pelo primo Jorge, que juntou algumas informações desencontradas, já sabia de tudo quando lá chegou.
Personagem essencial da trama, o kit "Groucho" - oclão, narigão e bigodão - perambulou por vários rostos e foi lembrado por dias a fio, a cada vez que a Milocas, encantada, contava a alguém as incríveis peripécias da intrépida Tetê, que saiu do Brasil na moita e fez grandes estragos de felicidade no dia em que chegou à terrinha.


terça-feira, 21 de outubro de 2008

Ney em Portugal

Ney Matogrosso no novo show "Inclassificáveis"

Ney Matogrosso está em Portugal. Acaba de se apresentar perante um Coliseu do Porto fervendo de gente e segue para dois espetáculos igualmente lotados no Coliseu dos Recreios, em Lisboa.

Ney é um artista singularíssimo. Fui literalmente derrubada por seu charme, musicalidade e talento num show pequeno e ainda tímido, chamado "Bandido" (quem não se lembra?), no Teatro Ipanema. Devo dizer que fui praticamente arrastada por minha amiga Ida Flores, que se desmanchava em elogios. Eu duvidava com um olho franzido e um meio-sorriso.

Resultado: cheguei falante e aos poucos fui ficando quieta, quieta, mudíssima, pregada na cadeira como se fosse parte do revestimento. E tomei contato com a força daquele homem, com os olhos de águia ferida, a desfaçatez gaiata e o enorme talento musical, um bom gosto a toda prova no repertório e um espírito de brincar, com leveza e respeito, com grandes clássicos do nosso cancioneiro (naquela época ainda se usavam termos assim).

Era 1977 e ninguém sabia ainda, mas o "Bandido" teria o mérito de alçar Ney definitivamente ao estrelato, após uma sofisticada porém obscura tentativa solo, alguns anos antes, no Teatro do Hotel Nacional, com "Corsário" - uma maravilha inovadora que, no entanto, não chegou a decolar.

"Bandido", que assumo ter assistido 23 vezes (e meia, porque numa delas cheguei atrasada), tornou-se emblemático. Ali Ney ousou esbanjar toda sua alquimia, manejou o tempero certo entre o folguedo e o drama - e seguiu mostrando quem era, afinal, a verdadeira cabeça do fenômeno "Secos & Molhados".

Após a explosão do Maracanãzinho, parecia que nada mais deteria o épico trio. Mas o mundo virou Ney do avesso da noite para o dia: empresários acometidos de delírios de grandeza, falta de controle financeiro e irresponsabilidade se encarregaram destruir logo o sonho. Ney precisou de tempo, muito tempo, para reconstruir sua carreira e se firmar como um dos grandes da nossa MPB. Mas quando isso aconteceu, foi pra sempre.

O Ney de hoje bem poderia sintetizar o nome do novo disco: é inclassificável. Voz única, sentimento, talento dramático, beleza física, espiritualidade, firmeza. E muito, muito mais. Aos 67 anos, corpinho de 35 e uma cabeça privilegiada, Ney sacode a vida portuguesa, entre carinhoso e definitivo. E toda a gente vai ao seu encontro.

Fico feliz com as notícias e lembro da primeira vez que estivemos juntos, no seu quarto do Hotel Terminus, na Brigadeiro Luiz Antonio - pertinho do Teatro Bandeirantes, onde o "Bandido" estreou na capital paulista.

Meu pai, que tinha por hábito acompanhar boa parte das minhas loucuras, fotografara o show a meu pedido, no Rio. E eu estava ansiosa para mostrar a ele o trabalho, que ficou uma beleza. Foi um custo conseguir a entrevista, mas ele nos recebeu, desconfiadíssimo. Achou que a gente queria vender as fotos! Tateando entre o êxtase de fã e a necessidade de vencer aquela barreira, apressei-me a dizer que não, que só queríamos mesmo que ele visse. Levamos um projetor de slides Kodak tipo carrossel, munido de um dispositivo chamado dissolver (ah, as doces tecnologias de então!), e projetamos tudo na parede. Ele gostou e gentilmente nos levou para o teatro, mas continuou muito desconfiado.

Pouco tempo depois preparei-lhe um álbum com todas as fotos e mandei de presente.

(Vender, imagina!...)

Eu e minhas amigas Déa e Vera nos aventurávamos muito pelas estradas para encontrar o "Bandido". Íamos pra São Paulo quase todo fim de semana! Por estranhas razões que nunca descobrimos, era urgente ver Ney, sentir de novo cada detalhe sabido de cor, sorrir com malícia na hora da "Boneca Cobiçada"' (e tentar espiar pelo espelho na vã tentativa de flagrá-lo nu, enquanto trocava a roupa em pleno palco), chorar na hora da "Gaivota", ver quem era o "Seu Valdir" da vez.

Gaivota, te amo e gaivotaria sempre em ti...

Um abusado Ney fazia do "Seu Valdir" - composição de Marco Polo, uma das revelações da época -, o momento mais esperado e hilariante da noite. Depois da "Boneca Cobiçada", o dorso nu e suado (sonho de consumo de nove entre dez das mulheres que se acotovelavam na primeira fila), Ney descia até a platéia e escolhia seu alvo: o homem mais sisudo e formal que visse à sua frente. Quanto mais cara de poucos amigos, melhor.

Postava-se então diante do eleito e cantava, entre dramático e zombeteiro:

"Seu Valdir, o senhor
magoou meu coração!
Fazer isso comigo, Seu Valdir?
Isso não se faz, não!
Eu trago dentro do peito
um coração apaixonado
batendo pelo Sr.!
O Sr. tem que dar um jeito!
Senão eu vou cometer
um suicídio
no dente de um ofídio
vou morrer!"

E por aí vai. A mulherada ficava esperando por aquilo! Muitas, que já conheciam o quadro, levavam seus respeitáveis maridos e compravam bilhetes bem perto do palco, na esperança de vê-los escolhidos para a "homenagem"!

E assim, entre o folguedo e o drama, Ney Matogrosso, o artista completo e que talvez melhor sintetize o jeito fagueiro e ao mesmo tempo profundo que é a marca da nossa nacionalidade, roubou meu coração de vez.

Sabê-lo estourando mais uma vez em Portugal é uma alegria enorme. Vejo como meus amigos o admiram, respeitam profundamente o seu talento. Não é para menos. O Ney é uma parte substancial do sal da nossa terra.

Gostava mesmo é de virar uma formiguinha e me esconder na borda do palco do Coliseu, só para me afogar no suor copioso que distribuirá a um público com certeza maravilhado com o canto e a força de uma das personalidades mais carismáticas da MPB de todos os tempos.

domingo, 28 de setembro de 2008

Sutis diferenças

Giacomo Puccini


Acabo de ver a montagem de La Bohème com que o Theatro Municipal do Rio de Janeiro comemorou o ano Puccini e comento com meu amigo Tiago Videira. Comparamos então os preços das entradas no Brasil e em Portugal; aqui ainda é mais barato, na média, para as produções locais. Quando se trata de estrelas internacionais, porém, os preços são estratosféricos para os padrões portugueses. Mas, pelo que Tiago me conta, lá há coisas fantásticas.
Imagine alguém chegar na bilheteria do Theatro Municipal, uns quinze minutos antes de começar um espetáculo que não está lotado e, por essa razão, pagar só meia entrada? Impraticável. Aqui a meia-entrada obrigatória para estudantes e idosos acima dos 60 anos é fortemente rejeitada pela classe artística e pelos empresários. Todos afirmam que ela é a principal razão de o teatro não dar lucro. Alguns chegam a elevar absurdamente o preço da dita "inteira" para evitar o peso da "meia" sobre a produção! Nesse clima, oferecer meia entrada em espetáculo vazio - o que poderia até salvar algum custo obrigatório - é totalmente impensável por aqui.
Outro lance incrível é o carinho que os teatros têm pelos estudantes interessados em ver os espetáculos, mas que não podem pagar; segundo o Tiago, é prática comum permitir o acesso gratuito de estudantes à galeria mais alta, quando chegam quase na hora a espetáculos onde ainda há bastante lugar. Que coisa mais simpática e civilizada! Aqui, o máximo a que um estudante poderia aspirar, em raríssimas ocasiões, é assistir no telão, do lado de fora (digo raríssimas porque é muito difícil colocarem telões nos espetáculos líricos. Pra ver baixaria, a tecnologia é sempre milionária!).
Aqui temos de conviver com a instituição do cambista, uma imoralidade que parece não ter cura - e que, até hoje, nenhuma autoridade se deu ao trabalho de eliminar, com melhores políticas de distribuição cultural. Estes estão sempre lá, querendo comprar as "sobras" de quem chega. Tenho por hábito só abrir minha bolsa para pegar minha entrada quando estiver a milímetros de distância do porteiro, tal o pânico que tenho desses sanguessugas. Por conta disso, aliás, acabei passando por uma pequena humilhação sem conseqüências, há uns anos atrás.
- Tem ingresso sobrando aí?, interpelou-me um deles, quase ao pé da escadaria.
- Pois se tivesse doava, mas não vendia para você - respondi.
- E você precisa emagrecer! - devolveu-me, cavalheiresco, o infeliz.
O que não entendo é: se todos os bilheteiros conhecem os cambistas, por que vendem pra eles? Por acaso sofrem ameaças? E por que não há guardas fiscalizando a ação clandestina, que só prejudica o público do Theatro e a própria instituição? Mas não, parece sempre que não há ninguém vendo, e os ditos agem livremente nas imediações.
Em Portugal, preferem vender pela metade do preço do que deixar cadeiras vazias. Mais: preferem que os estudantes entrem de graça, se houver lugar, do que frustrar as expectativas de alguém que mais tarde poderá vir a ser um artista, um músico, um regente talvez. Não é mais civilizado e mais inteligente? Taí algo que poderíamos muito bem aprender com nossos queridos ancestrais. Um pouco da antiga cultura, quando vem para iluminar, não faz mesmo mal a ninguém, não é mesmo?