sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Groucho à portuguesa

Tetê, a caráter - Foto: Arquivo familiar

A boa Milocas não tinha idéia do que a esperava naquela tarde pacata em Lisboa, quando a amiga Lena chegou para um chá tão prometido quanto inopinado.
- Ó Milocas, acho que passo por aí hoje à tarde para tomar aquele chá que combinamos outro dia, não te lembras?
Lembrava-se, claro, mas na verdade estranhou que fosse já para aquele dia.
- Está bem, Lena, então te espero. Por volta das três?
- Pode ser, pode ser.
A Milocas tratou de arrumar as guloseimas, alguns tipos de chá, leite, café, uma ou outra geléia feita em casa e, à hora aprazada, ouviu a campainha. Recebeu a Lena com toda a festa, mas não deixou de observar no rosto da velha amiga uma certa excitação, mais ou menos como uma criança que acabou de fazer arte.
- Mas o que é que tu tens, mulher? Parece-me um tanto excitada...
- Pois estou, claro que estou - tentou disfarçar Lena. - Que trânsito para chegar aqui, tu nem imaginas! Esta cidade está uma confusão. Eu até gostava de um copo d'água...
Milocas foi buscar. Pouco depois as duas já se entretinham em botar as novidades em dia.
- Mas e a tua irmã lá no Brasil, tem notícias dela? - perguntou distraidamente a Lena.
- Ah, falo com ela todos os dias - disse Milocas. - Hoje é que não consegui, pois afinal ela estava com visitas. Esse negócio de internet é uma maravilha; nem nos telefonamos mais! Só dou um toque e ela já sabe que sou eu; então desligo e vamos as duas para o Skype.
- Que ótimo! Eu também uso muito, é tão simples... E o som é perfeito, parece que a pessoa está mesmo aqui - ajuntou Lena, disfarçando com habilidade um olhar furtivo em relação à porta. Praticamente a seguir ouve-se a campainha.
- Estás esperando alguém? - indagou a Lena, com ar ausente.
- Pois não! Quem poderá ser? Ó Marques! Podes atender, se faz favor? - dirige-se Milocas ao marido.
Marques vai à porta. Cada passo seu é engenhosamente acompanhado por Lena, com o rabo do olho, entre um gole de chá e um biscoitinho amanteigado.
Um instante compridíssimo parece paralisar a cena. Milocas alonga as palavras, Lena estica o tempo de sorver o chá, a mão do Marques demora a alcançar a fechadura.
- Quem é, Marques?
- É para você, Milocas.
A contragosto, a anfitriã deixa a visita no sofá e segue até a porta, onde enormes óculos redondos, um nariz descomunal quase à Groucho Marx e um bigode de pontas retorcidas a contemplam, dentro de um sorriso de plástico. Fica confusa.
- Quem é? - Milocas estuda a figura feminina à sua frente, desconfiada e incrédula. Conheço mais ou menos este cabelo, mas pela altura não dá para saber, lembra-me alguém, tem algo da minha irmã, mas quem será esta, os pensamentos correm em volta de um silêncio atônito e da máscara diante de si.
- Mas então tu não me conheces mais, Milocas? Sou eu, a tua irmã!
O sangue lhe foge do corpo, mete-se lá não se sabe onde. Tudo lhe passa pela cabeça, ela custa a juntar alhos com bugalhos, e de repente sente os joelhos dobrarem. Se não fosse pelo Marques, que a enlaça no instante fatal, teria desmaiado bem à antiga.
- Mas como é que podes estar aqui, se há pouco estavas com visitas lá no Brasil? - debate-se Milocas entre o fato e a versão do fato.
No sofá, Lena mija-se de rir. Recobradas a cor e a pulsação, Milocas já pode controlar os joelhos e senta-se para ouvir toda a pantomima.
- Mandei minha nora entrar no Skype para te dizer que estava com visitas - diverte-se Tetê, a bem-humorada irmã, bem abrasileirada pelos anos à beira-mar, no litoral de Saquarema.
- Mas onde é que arranjaste isto? - aponta Milocas para a máscara.
- Ah, no meu aniversário recebi os meus convidados assim - conta Tetê, entre risos.
E tome que tome chá, biscoitos, abraços e beijos de anular saudades. Agora é a vez da Milocas de aprontar das suas: telefona à Laida, outra amiga e vizinha, e a convida para dar um pulinho lá.
- Está aqui a Lena, estamos tomando um chá, venha ter conosco!...
Laida concorda e, ao chegar, a mesma cena se repete: confusão, dúvida, surpresa e gargalhadas. Laida gosta tanto da novidade que resolve chamar também o seu marido, alegando que não quer voltar sozinha para casa. Casmurro, o marido concorda em ir buscá-la mas não quer subir. Ah, mas ela insiste. Como insite! E quando ele chega, a mesma cena e muitas gargalhadas mais. O chá entra pela noite, brotam bolinhos salgados e até um vinho para coroar a festa. A única que a Tetê não conseguiu pegar foi a sobrinha Isabel; alertada pelo primo Jorge, que juntou algumas informações desencontradas, já sabia de tudo quando lá chegou.
Personagem essencial da trama, o kit "Groucho" - oclão, narigão e bigodão - perambulou por vários rostos e foi lembrado por dias a fio, a cada vez que a Milocas, encantada, contava a alguém as incríveis peripécias da intrépida Tetê, que saiu do Brasil na moita e fez grandes estragos de felicidade no dia em que chegou à terrinha.


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