terça-feira, 21 de outubro de 2008

Ney em Portugal

Ney Matogrosso no novo show "Inclassificáveis"

Ney Matogrosso está em Portugal. Acaba de se apresentar perante um Coliseu do Porto fervendo de gente e segue para dois espetáculos igualmente lotados no Coliseu dos Recreios, em Lisboa.

Ney é um artista singularíssimo. Fui literalmente derrubada por seu charme, musicalidade e talento num show pequeno e ainda tímido, chamado "Bandido" (quem não se lembra?), no Teatro Ipanema. Devo dizer que fui praticamente arrastada por minha amiga Ida Flores, que se desmanchava em elogios. Eu duvidava com um olho franzido e um meio-sorriso.

Resultado: cheguei falante e aos poucos fui ficando quieta, quieta, mudíssima, pregada na cadeira como se fosse parte do revestimento. E tomei contato com a força daquele homem, com os olhos de águia ferida, a desfaçatez gaiata e o enorme talento musical, um bom gosto a toda prova no repertório e um espírito de brincar, com leveza e respeito, com grandes clássicos do nosso cancioneiro (naquela época ainda se usavam termos assim).

Era 1977 e ninguém sabia ainda, mas o "Bandido" teria o mérito de alçar Ney definitivamente ao estrelato, após uma sofisticada porém obscura tentativa solo, alguns anos antes, no Teatro do Hotel Nacional, com "Corsário" - uma maravilha inovadora que, no entanto, não chegou a decolar.

"Bandido", que assumo ter assistido 23 vezes (e meia, porque numa delas cheguei atrasada), tornou-se emblemático. Ali Ney ousou esbanjar toda sua alquimia, manejou o tempero certo entre o folguedo e o drama - e seguiu mostrando quem era, afinal, a verdadeira cabeça do fenômeno "Secos & Molhados".

Após a explosão do Maracanãzinho, parecia que nada mais deteria o épico trio. Mas o mundo virou Ney do avesso da noite para o dia: empresários acometidos de delírios de grandeza, falta de controle financeiro e irresponsabilidade se encarregaram destruir logo o sonho. Ney precisou de tempo, muito tempo, para reconstruir sua carreira e se firmar como um dos grandes da nossa MPB. Mas quando isso aconteceu, foi pra sempre.

O Ney de hoje bem poderia sintetizar o nome do novo disco: é inclassificável. Voz única, sentimento, talento dramático, beleza física, espiritualidade, firmeza. E muito, muito mais. Aos 67 anos, corpinho de 35 e uma cabeça privilegiada, Ney sacode a vida portuguesa, entre carinhoso e definitivo. E toda a gente vai ao seu encontro.

Fico feliz com as notícias e lembro da primeira vez que estivemos juntos, no seu quarto do Hotel Terminus, na Brigadeiro Luiz Antonio - pertinho do Teatro Bandeirantes, onde o "Bandido" estreou na capital paulista.

Meu pai, que tinha por hábito acompanhar boa parte das minhas loucuras, fotografara o show a meu pedido, no Rio. E eu estava ansiosa para mostrar a ele o trabalho, que ficou uma beleza. Foi um custo conseguir a entrevista, mas ele nos recebeu, desconfiadíssimo. Achou que a gente queria vender as fotos! Tateando entre o êxtase de fã e a necessidade de vencer aquela barreira, apressei-me a dizer que não, que só queríamos mesmo que ele visse. Levamos um projetor de slides Kodak tipo carrossel, munido de um dispositivo chamado dissolver (ah, as doces tecnologias de então!), e projetamos tudo na parede. Ele gostou e gentilmente nos levou para o teatro, mas continuou muito desconfiado.

Pouco tempo depois preparei-lhe um álbum com todas as fotos e mandei de presente.

(Vender, imagina!...)

Eu e minhas amigas Déa e Vera nos aventurávamos muito pelas estradas para encontrar o "Bandido". Íamos pra São Paulo quase todo fim de semana! Por estranhas razões que nunca descobrimos, era urgente ver Ney, sentir de novo cada detalhe sabido de cor, sorrir com malícia na hora da "Boneca Cobiçada"' (e tentar espiar pelo espelho na vã tentativa de flagrá-lo nu, enquanto trocava a roupa em pleno palco), chorar na hora da "Gaivota", ver quem era o "Seu Valdir" da vez.

Gaivota, te amo e gaivotaria sempre em ti...

Um abusado Ney fazia do "Seu Valdir" - composição de Marco Polo, uma das revelações da época -, o momento mais esperado e hilariante da noite. Depois da "Boneca Cobiçada", o dorso nu e suado (sonho de consumo de nove entre dez das mulheres que se acotovelavam na primeira fila), Ney descia até a platéia e escolhia seu alvo: o homem mais sisudo e formal que visse à sua frente. Quanto mais cara de poucos amigos, melhor.

Postava-se então diante do eleito e cantava, entre dramático e zombeteiro:

"Seu Valdir, o senhor
magoou meu coração!
Fazer isso comigo, Seu Valdir?
Isso não se faz, não!
Eu trago dentro do peito
um coração apaixonado
batendo pelo Sr.!
O Sr. tem que dar um jeito!
Senão eu vou cometer
um suicídio
no dente de um ofídio
vou morrer!"

E por aí vai. A mulherada ficava esperando por aquilo! Muitas, que já conheciam o quadro, levavam seus respeitáveis maridos e compravam bilhetes bem perto do palco, na esperança de vê-los escolhidos para a "homenagem"!

E assim, entre o folguedo e o drama, Ney Matogrosso, o artista completo e que talvez melhor sintetize o jeito fagueiro e ao mesmo tempo profundo que é a marca da nossa nacionalidade, roubou meu coração de vez.

Sabê-lo estourando mais uma vez em Portugal é uma alegria enorme. Vejo como meus amigos o admiram, respeitam profundamente o seu talento. Não é para menos. O Ney é uma parte substancial do sal da nossa terra.

Gostava mesmo é de virar uma formiguinha e me esconder na borda do palco do Coliseu, só para me afogar no suor copioso que distribuirá a um público com certeza maravilhado com o canto e a força de uma das personalidades mais carismáticas da MPB de todos os tempos.

3 comentários:

sombra_arredia disse...

"Gostava mesmo é de virar uma formiguinha e me esconder na borda do palco "

Este sentimento é-me tão familiar
:)

Bacci mille

SUPORTE EMPRESAS disse...

Gaivota, te amo e gaivotaria sempre em ti...

Gostaria de saber sobre essa gaivota citada,. A mesma faz parte de qual música??? Confesso que a procuro ha anos.
Gostaria de saber se o Ney Matogosso gravou essa música independente do grupo Secos&Molhados.
Aguardo resposta, grato de coração

Maurette disse...

Olá, João! Sim, o Ney gravou esta música no segundo disco solo, "Bandido", no ano de 1977. É uma música de autoria da dupla Luli e Lucinha, duas compositoras que o Ney praticamente lançou, no seu primeiro período de sucesso solo. A canção chama-se "Gaivota" e diz assim:

Gaivota menina
de asas paradas
voando no sonho
d'águas da lagoa...

Gaivota querida,
voa numa boa
que o vento segura
voa numa boa

Gaivota na ilha
sem noção da milha
ficou longe a terra
gaivota menina

Gaivota querida
voa numa boa
que o alento segura
voa numa boa

Gaivota, te amo e gaivotaria sempre em ti
Gaivotar seria poder te eleger para mim

Eu te quero e se fosse o caso
quereria mais ainda ser eu mesmo
Gaivota sobre mim

Sobrevoar meus temores, meus amores
e alcançar o alto, o alto,
o mais alto dos teus sonhos
dos teus sonhos de subir!...

De subir aos ares
gaivota menina,
gaivota querida,
voa perto de mim!

No emule consegui baixar uma vez, mas estava cortada ao meio... :( fiquei triste. É uma bela canção! Obrigada pela visita e um abraço,
Maurette