segunda-feira, 7 de julho de 2008

Ventos lusitanos nas pedras da história

José Luís Peixoto em Paraty
Foto: Maurette Brandt

Pela sexta vez a Flip toma Paraty - não de assalto, mas nos braços, com delicadeza e fúria de palavras. Todo ano é assim, um rito sabido e sempre novo, os veteranos da rotina de entre-sai entre palestras com cara de recém-chegados e ansiedade de criança diante de um prazer muito esperado.

Do feitiço de sua história ancestral, onde proliferam os sinais típicos do colonizador, no melhor sentido, Paraty é muito portuguesa na arquitetura mesclada, nos trejeitos faciais, no cheiro de mar de uma vela sôlta, ao longe. E na Flip, um paraíso literário que acolhe todas as tendências em malemolente comunhão, a presença da terrinha esteve sempre muito bem demarcada.

José Luís Peixoto, uma das forças gritantes da nova escrita de além-mar, está por aqui com o seu jeito de menino de alma antiga, em perfeita sintonia com as ruas guardadas, os desvios e os ventos cortados de Paraty. Que ninguém se engane com essa vera simplicidade; por dentro há fogo e enigmas, sutis primaveras traduzidas numa prosa poderosa e numa poesia toda em contas de vidro, umas grandes e escuras, outras pequenas, transparentes, algumas de porcelana e quem sabe algum búzio mágico herdado das navegações.

Encontro-o logo após ter atuado como mediador da última mesa da quinta-feira. É a sua primeira vez nesse papel, palestrante que foi na gloriosa Flip 2005. Apresento-me e, com minhas razões portuguesas, convido-o a uma conversa para ser registrada aqui neste blog. Nos caminhos curtos da cidade de piso improvável, perdemo-nos algumas vezes antes que a prosa tomasse corpo, mas confiei. E valeu mesmo a pena.

A tal alma antiga, aquela que de certo modo lhe inventei - e até torna possível imaginá-lo de terno branco, as mãos sem lugar certo, ao lado de uma mala desbotada de cartão, numa estação de trem que bem poderia estar em Paraty ou Tiradentes - existe de fato, ancorada na memória de ter crescido numa aldeia com talvez menos de mil habitantes e muitos idosos.

- Sempre tive a habilidade de transitar entre idades. A convivência com essas pessoas, muitas com mais de oitenta anos, foi muito importante para a minha escrita. Nesses lugares onde há mais tempo, as pessoas conseguem refletir mais sobre o que é essencial à existência. A vida corrida nos tira um pouco isso. Mas eu pude aproveitar essa profundidade, e então fui aprendendo a estar um pouco em todas as idades. Compreendi que todas são boas e às vezes até podem ser vividas simultaneamente.

O personagem central de seu romance Cemitério de Pianos, que está sendo lançado agora no Brasil, também transita entre uma nota básica de tristeza e a vontade de ser. Inspirado muito livremente numa figura épica da moderna história de seu país - o maratonista Francisco Lázaro, o primeiro atleta português a participar de uma Olimpíada, precisamente a de 1912 em Estocolmo - o romance costura com habilidade e delicadeza raras as dores próprias do crescimento do protagonista, o labirinto familiar e o mágico terreno da marcenaria da família, onde moram os pianos por restaurar e toda a magia que aquelas pessoas precisam para viver.

Tenho curiosidade em saber até onde vai a realidade nessa ficção.
- Todo o psicológico é inventado, a história familiar, as tramas e tudo o mais. O que é verdadeiro é o arcabouço do personagem, o que ele representou para Portugal, sua morte trágica durante a prova, o fato de nunca ter saído do país até fazer aquela viagem difícil, que na época durava mais de uma semana, até Estocolmo. Estudei muito a vida e a carreira de Francisco Lázaro, e com isso encontrei tantas informações que tive de abandonar algumas no processo de escrever o romance, embora muitas vezes com pena, mas por ter convicção de que elas não dariam ao personagem o rumo que eu imaginava.

Dentre as curiosidades sobre a Olimpíada de 1912, José Luís descobriu que um atleta japonês, também maratonista, desapareceu durante a prova sem deixar vestígios - e só foi encontrado nos anos 60, já com 80 anos e vivendo com uma sueca. Outro atleta, um índio americano, ganhou várias medalhas, mas todas lhe foram retiradas pelo simples fato de ser índio.

- Uma das dificuldades que tive para situar Francisco Lázaro foi o fato de não ter encontrado uma só pessoa que o tivesse conhecido - revela. - Bem, isso não é de se estranhar, pois ele morreu em 1912 e só deixou uma filha, que nasceu nesse mesmo ano, após a morte do pai, e que também já não vive.

Nada disso impede, porém, que o Francisco Lázaro de Cemitério de Pianos tenha uma vida marcada por todas as intensidades humanas normais e algumas peculiares, e que exiba uma personalidade absolutamente complexa, mergulhada em dúvidas, duplicidades e até num certo lirismo.

Animado com a edição brasileira do romance, "muito bonita", José Luís não se mostra preocupado com a anunciada unificação gramatical da nossa língua. - Não vejo problema em que se mude a grafia de algumas palavras, pois isso é muito pouco diante do essencial que está preservado. Não consigo entender por que as pessoas vêm tomando posições radicais a esse respeito. Acho sinceramente que não é para tanto. Vou continuar escrevendo da mesma forma, não me importo em me adaptar às pequenas mudanças. O importante é conviver bem com as diferenças normais que existem de um país para o outro, na forma de usar a língua. Isso permanecerá no domínio da criatividade normal de cada povo, e é importante que seja assim.

A esse respeito, lembro que só recentemente aprendi que telefonia, palavra recorrente nos primeiros capítulos do seu romance, era antigamente o termo português para rádio. E também que dióspiro e caqui são a mesma fruta, apesar dos nomes tão diferentes.

Fã que sou da sua luminosa poesia, encontro uma nota algo tristonha em Fotografia do Rio de Janeiro, e ele discorda. - São apenas viagens, fotografias de cidades em momentos dados. Esses poemas estão num livro chamado Gaveta de Papéis, lançado em abril em Portugal. Esse é um livro interessante porque foi organizado como se fosse mesmo uma gaveta de papéis sendo arrumada; há a série Fotografias, depois vêm os Documentos, como certidão de nascimento, carta de condução (vocês dizem isso?), e por aí vai.

Explico que aqui a carta de condução chama-se carteira de motorista. Acha graça e sorri, enquanto me explica como concebeu, nos mínimos detalhes, a organização dessa sua Gaveta poética. E conta que o segundo romance, Uma casa na escuridão, será lançado ainda este ano no Brasil.

No papo sobre o que nos aproxima e nos distancia a nós, portugueses e brasileiros, pergunto como essas eventuais diferenças ou semelhanças se traduzem no terreno do amor. - As culturas têm formas diferentes de representar o seu próprio universo no que ele tem de mais concreto. Até uma mesa como esta, ou uma cadeira, podem ser definidas de maneiras distintas por pessoas de culturas diferentes... imagina então o amor, que é um ato de sentir? Isso é muito subjetivo, mas acho que as pessoas não amam com as culturas propriamente, amam com o coração. E nesse terreno o entendimento se dá num outro plano, que está além do cultural.

Lembro uma de suas crônicas recentes, que expõe toda a sua fragilidade diante da doença de um filho. - Os filhos são o amor, e é muito difícil de falar sobre eles. Não porque não haja muito a ser dito; é porque temos de pensar muito antes de pôr coisas tão fortes em palavras. Estar com meus filhos é estar na minha dimensão mais natural, mais profunda e básica. É neles que me carrego e me fortaleço. Não sei explicar muito.

A poesia de José Luís Peixoto tem presença forte na música em sua terra, mas ele não se define como compositor. - Colaboro com músicos de todas as tendências, desde o fado até o hip-hop, passando pelo rock e o heavy metal - sorri. - E acho fascinante ver o resultado de poema e música. Aliás, gostei muito de ver um poema meu, "Estou sozinho", musicado por uma artista brasileira, Bessa. Está lá no YouTube!

Na plenitude dos seus 34 anos, esse rapaz de olhos verde-profundos convive bem com tudo que é próprio da sua geração: YouTube, Orkut, MySpace, Hi5, piercings, tatuagens, uma contemporaneidade que traduz bem o tempo-presente, sem perder de vista os tempos da alma. A singeleza, as atitudes clássicas e uma calma que lhe parece imanente são coisa de temperamento. - Sou assim mesmo, embora isso seja parte de um esforço. Sim, porque nem sempre é fácil manter a calma, não é?

Despedimo-nos após as fotos tiradas com a minha câmera digital - que, observou, é igual à sua. Luto um pouco contra a claridade que parece "estourar" a imagem, mas acabo conseguindo um resultado interessante. Tecnologia ajuda...

À noite, após a última palestra da Flip, encontro-o casualmente em meio ao animado trânsito da Rua do Comércio. Em duas horas estarei no ônibus para o Rio; ele segue no dia seguinte, pois cumprirá na cidade uma apertada agenda literária antes de retornar a Lisboa. Fico feliz por saber que vai conhecer o Real Gabinete Português de Leitura, maravilha arquitetônica transbordante de idéias (e livros) que é uma das paixões do Rio.

Na cabeça, guardo com cuidado as densidades várias que partilhamos, para que não se misturem e possam ser traduzidas com a devida clareza neste blog. Talvez Paraty e suas pedras sem idade, suas paredes de estuque e a mansa baía adornada de palmeiras tenham algo a ver com esse encontro... não sei, pode ser. O cenário, afinal, combina com José Luís Peixoto e com a matéria poética de que parece ser feito.

3 comentários:

Anônimo disse...

...O que merece ser dito como comentário deste post é preferível nao ser revelado ao público lol, daí só deixo um sorriso esboçado a ti Mau ***

:)

Cris

Anônimo disse...

..Tá perfeita a escolha musical palmaníaca :)

Cris

blue kite disse...

Gostei muito de ler a crónica "brasileira" sobre o JLP. Muito mesmo. Obrigada.
Sobre os livros dele apenas posso dizer que há um livro dele que me marcará para sempre. O "Morreste-me". Foi como se ele tivesse conseguido passar para o papel tudo o que eu em tempo vivi. paar mim isso será sempre inestimável, imensurável. Tive a oportunidade de lhe dizer pessoalmente isso. Na sequência dessa nossa conversa ele escreveu-me a seguinte dedicatória: "para a Cristina, este pequeno livro que espero que possa continuar a ser grande dentro de ti. Com estima do JLP".
Deposi li quase todos os outrso livros dele (e crónicas) e não há dúvida que consegue sempre tocar-em de uma maneira especial.