terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Sustos e alegrias em português


Há semanas que estou engolfada na Gramática: participo da quarta edição do Campeonato da Língua Portuguesa, uma invenção interessante do jornal Expresso, de Portugal. O Tiago Videira lançou-me o desafio - e cá estou, entre a grafia e a sintaxe, pronta para surpreender-me várias vezes por dia.

O Campeonato compõe-se de três testes escritos, após os quais 200 felizardos prestarão um exame no auditório do Centro Cultural de Belém, que determinará os vencedores em três categorias etárias. Os prêmios são apetitosos: uma viagem ao Egito com acompanhante, para que o primeiro colocado possa conhecer a Biblioteca de Alexandria. O segundo e o terceiro também ganham ótimas viagens, a Londres e Madrid, respectivamente, para visita à terra de Shakespeare e refazer o percurso de Dom Quixote de La Mancha. Fora isso, todos os premiados ganham mil e um livros, dicionários e assinaturas do portal luso de pesquisa Infopedia.

Confesso que comecei confiante demais - e fui mal no primeiro teste. É verdade que não estudei nem pesquisei o suficiente; mas as diferenças de uso da língua no Brasil e em Portugal contribuíram para o resultado. Espantei-me ao perceber que, numa mesma língua, há regras gramaticais diferentes de um país para o outro. E não estou falando de grafia de palavras. Apesar de o regulamento do Campeonato alegar que essas diferenças são levadas em conta na hora da correção, as coisas não são bem assim. Uma das minhas respostas foi considerada errada porque, em Portugal, as formas do verbo haver acrescidas de "de" levam hifen, enquanto no Brasil essa prática constitui erro gramatical. Aqui escreve-se "hei de vencer", não "hei-de vencer".

Tenho de admitir que sou uma pessoa crédula, em muitos aspectos. Sempre levei a maior fé no propalado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que continua a ser objeto de muita discussão. Sete dos oito países onde o português é o idioma oficial já o assinaram; a única exceção é São Tomé e Príncipe. No entanto, como já dizia Rui Guerra em Calabar, há distância entre intenção e gesto: embora sete países concordem com os termos do dito Acordo e tenham a intenção de implementá-lo, o gesto, em si, ainda não aconteceu.

Assinado em dezembro de 1990, o Acordo deveria estar em vigor desde 1994. No entanto, não poderíamos estar mais longe disso. Tenho uma grande amiga que morou seis anos em Portugal e, apesar de ser respeitada como profissional e como pessoa na terrinha, cansou de ouvir coisas do tipo: - Tu és burra! Tu não sabes falar! Até hoje ela não se conforma com o fato de os portugueses usarem a expressão mais pequeno, que toda criança brasileira aprende como um dos mais graves erros gramaticais básicos do idioma: o correto, para nós, é menor.

Há pouco tempo, em pesquisa na Internet, encontrei algumas matérias jornalísticas sobre a questão do Acordo Ortográfico. Numa delas, extraída de uma conceituada revista brasileira, alguém deu um depoimento interessante: - Portugal trata o idioma português como se fosse propriedade sua. Concordo, sem querer polemizar; acho que as diferenças regionais (e aqui no Brasil, que é tão grande, elas são imensas) devem ser respeitadas. No entanto, é fundamental que todas as linhas da Gramática digam a mesma coisa no Brasil, em Portugal, em Angola, no Timor Leste... enfim, em todos os oito países que se orgulham por integrar a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP.

Por enquanto não é assim, e talvez a sonhada unificação da Gramática seja afinal uma utopia. Mas continuo a acreditar numa diversidade saudável, que preserve o pitoresco de cada cultura e nos dê espaço para rir, brincar e aprender uns com os outros. O incrível Manuel Alegre, dublê de poeta, escritor e político em Portugal, desabafou durante um encontro memorável com Lygia Fagundes Telles, na Bienal do Livro: "Mudem o que quiserem, mas por favor, não me tirem o "c" de facto!"

Em Portugal, uma notícia é um facto e uma roupa é um fato: fato de banho (maiô ou sunga), fato formal (terno) e por aí vai. Até aí, tudo bem, trata-se de uma diversidade de uso e ambas as formas escritas são admitidas. Mas dizer que a palavra cotidiano, assim escrita, é um erro só porque a forma não é usada em Portugal, onde ainda se escreve quotidiano, não me parece justo. O Brasil aboliu a grafia etimológica - "ph" por f, "cç" por "c", como em phosphoro ou direcção - em 1930. Por que é que Portugal não pode pelo menos aceitar as simplificações feitas a partir de profundos estudos filológicos?

O mais importante, quando se trata do idioma, é mesmo o uso real que os cidadãos fazem dele no dia a dia. Disso ninguém escapa e, apesar de os filólogos adorarem discutir as minúcias, o que vale é a língua praticada pelas pessoas. Não há dicionarista no mundo capaz de segurar esse processo apenas com base na legislação. Por isso é que a questão do Acordo Ortográfico do nosso idioma deve passar pelo crivo dos cidadãos, se é que deseja vir a funcionar um dia. Acho que as teorias devem deixar os gabinetes e passar a freqüentar as escolas, ser discutidas por professores e alunos, organizações comunitárias. Por que as nossas escolas secundárias e universidades - brasileiras, portuguesas, africanas, timorenses - não fazem mais intercâmbio nesse sentido? Se a questão for tratada pelas escolas desde sempre, como um tópico da Língua Portuguesa a ser ensinado às crianças, as diferenças serão melhor percebidas por um e outro público, o que tornará mais fácil a comunicação. É preciso que não nos agarremos a grafias e conceitos como se fossem nossos; mais do que nunca, é importante aprender a flexibilizar e a aceitar acréscimos, incorporações e mudanças, partindo do princípio de que existem milhares de pessoas, em países e culturas distintas, que falam pelo menos um pouco como nós.

Devo dizer que o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, tal como está sendo proposto, é bastante generoso. Dei-me ao trabalho de lê-lo inteiro, e as mudanças que se pretende são mínimas e muito possíveis. Até o final da década de 1970, por exemplo, aqui no Brasil escrevíamos notòriamente com um acento grave. Quando esse acento foi abolido, foi difícil reaprender a escrever palavras que já estavam arraigadas, mas todo mundo se adaptou sem maiores prejuízos - e com ganhos para a beleza da língua escrita.

Está mais do que na hora de informarmos a nossa população sobre o que pretende o Acordo, em vez de rechaçá-lo em nome de normas às quais estamos exageradamente aferrados. Uma gramática comum traria não só benefícios a quem aprende, mas facilitaria sobremaneira o trâmite comercial e o intercâmbio cultural entre os países.

E enquanto essas coisas não acontecem, seguimos todos rindo, brincando e festejando a alegria imensa que é ter nascido em português.

Ah, em tempo: no segundo teste, acertei todas as questões menos uma... e ao terceiro, que ainda não entreguei, dedico-me como nunca! Não serei uma das duzentas pessoas selecionadas para a etapa final da competição, mas já me sinto em treinamento para o certame do ano que vem!

2 comentários:

Roberto Mauro disse...

achei seu blog, assim meio sem querer, mas gostei muito. Parabens,blog, limpo inteligente. Legal

Musicologo disse...

A unificação total me parece impossível, mas o que interessa é que mal ou bem todos nos entendamos. Quanto ao campeonato, para o ano é a sério! Acredito em ti!