quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Não me tirem o "c" de facto!...

Manuel Alegre

No penúltimo dia da Bienal do Livro no Rio de Janeiro, aventurei-me numa viagem interminável no transporte disponibilizado pelo Metrô, até o Riocentro, na Barra da Tijuca. O que parecia fácil e civilizado - tomar o ônibus Siqueira Campos-Barra, depois fazer uma conexão no Terminal Alvorada até o Pavilhão de Exposições do Riocentro, com direito a pagar meia entrada para curtir a Bienal - foi uma verdadeira odisséia, cansativa e longuíssima. E que me fez chegar um pouco atrasada ao evento que me levou até lá: assistir, na Esquina do Leitor, ao bate-papo com Lygia Fagundes Telles e Manuel Alegre.

O português Manuel Alegre, 70 anos de incrível vitalidade e simpatia, sempre foi objeto de uma grande curiosidade da minha parte. Poeta consagrado, escritor, personalidade respeitada por meio mundo, consegue ainda ser um político socialista coerente, vibrante e cheio de sonhos.

Pois as agruras da viagem pagaram-se, e muito bem. A conversa entre os dois monstros sagrados da literatura não poderia ter sido mais agradável, profunda e inspiradora. A Lygia - ela que me desculpe a intimidade, mas isso é conquista da familiaridade que brota automaticamente das páginas do livro, entre o leitor e o seu autor - é sempre magnífica, próxima, rica em maravilhas para partilhar com todo mundo. Não é à-toa que em segundos se forma uma multidão em torno dela, e às vezes é preciso que a fiel secretária a ampare para preservá-la do excesso de amor que costuma suscitar. E o Manuel, esse é um boa-praça dos mais qualificados.

A Esquina do Leitor é um espaço interessante, amplo e cheio de bancos corridos. Um pequeno palco eleva os autores só o suficiente para serem vistos por todo mundo. Eles também sentam em bancos de jardim, contra um fundo plotado que reproduz fachadas do melhor colonial brasileiro. A sala, criada com divisórias, não é de todo imune ao burburinho que emana da área dos stands da feira, ou da praça de alimentação ali tão perto; mas lá dentro, sei lá, cria-se um pacto de devoção e silêncio, de atenção redobrada, que faz de todos cúmplices da proposta de ouvir o que os escritores têm a dizer para além das páginas dos livros.

Falou-se um pouco do óbvio: por que os escritores portugueses não são mais lidos no Brasil, e vice-versa? Lygia não entende. "Nós sempre nos amamos de paixão, os portugueses e os brasileiros. Como é que o público não tem em mãos os livros dos grandes poetas portugueses aqui, meu Deus?" Manuel - que pela primeira vez lança um livro seu no país, o romance "Cão como nós"- concordou com veemência e reputou "As Meninas", de Lygia, como "a obra que mudou o panorama da literatura em língua portuguesa, revolucionou a maneira de contar uma história".

Os dois falaram sobre os seus personagens e a forma como eles ganham vida própria além do papel. Lygia tem histórias ótimas de quando é interpelada por um leitor, que questiona o rumo de um personagem. "
Não senhora, acho que ele não morreu. Acho que está escondido em algum lugar. Não acredito que a senhora fez isso." Mas há também aqueles que morrem e voltam, pedem para retornar à vida. "Vira e mexe um deles chega perto de mim e me pede: Lygia, você me matou! Deixa-me viver de novo!", diz. "Eu respondo que não, e explico: Olha, você morreu, não fui eu que te matei. Mas os personagens insistem!", diverte-se. Ao Manuel também acontece de personagens retornarem e cobrarem dele o destino que lhes atribuiu. "Às vezes escuto, às vezes faço que não ouvi" - comenta.

As histórias da cadela da família, personagem central de "Cão como nós", não poderiam faltar. "Leiam, leiam esse livro", entusiasma-se Lygia. "É uma beleza. Não se consegue largar!". Manuel recorda que o animal costumava refestelar-se em busca de carinho, manhosamente, diante de qualquer visita que chegasse, enquanto à família repelia. "Ele fazia de propósito!" Uma amiga, ao ver o cão tão solícito, chegou a comentar: "
Mas este cão está cheio de carências afetivas!". "Dava-nos muita raiva", sorriu.

Ainda sobre a questão da publicação dos autores portugueses no Brasil, Manuel Alegre levantou a questão da ortografia. "Sou favorável ao acordo ortográfico que unifica o nosso idioma", garantiu. "Mas há exceções: palavras como
facto e fato. Para mim, um fato sem o "c" será sempre terno, roupa. E um facto, com "c", uma notícia, um acontecimento. Portanto, podem reformar tudo, mas por favor, não me tirem o "c" do facto!"

Lygia observou que as pequenas diferenças são importantes para dar a cor local. "O português é um idioma falado em oito países! É o sexto idioma mais falado no mundo! E como é rico! Não podemos querer apagar as diferenças normais de expressão de cada lugar, mas o que importa é que o português continua sendo uma das línguas mais belas, ricas e interessantes. É por isso que não vejo mal em assimilarmos, na literatura, a diversidade que traz em si o retrato de cada cultura; nem por isso a nossa língua deixa de ser a mesma."

Manuel Alegre falou de seu amor pelos poetas brasileiros, por Drummond e Bandeira em especial. Em sua época, era comum ler todo mundo. "Para nós eram poetas da língua portuguesa e pronto. Não importava se eram portugueses ou brasileiros." Lygia também falou da importância de Miguel Torga, Fernando Pessoa e seus heterônimos, além de muitos outros. Manuel Alegre lembrou Mário Cesariny e Alexandre O'Neill, outros grandes da poesia portuguesa. E ambos concordam que é preciso lê-los e tê-los no coração sem distinção de nacionalidade.

Como político, Manuel não descansa, não abre mão da combatividade e dos seus ideais. Seu artigo "Contra o medo, a liberdade", publicado em julho passado no jornal português Público, no qual escreve regularmente, causou enorme repercussão, sacudiu a estagnação das pessoas e provocou uma nova reflexão sobre o papel da sociedade em cultivar o exercício da liberdade verdadeira de agir e pensar.

Ao final... mas que final? Conversas desse tipo nunca terminam de verdade. Palavras rápidas e apertos de mão trocados, os dois - cada um deixando um séquito para trás - embarcam nos práticos carrinhos que a produção reserva para as estrelas da festa literária. E nós ficamos com as palavras, o exemplo e as atitudes que nos oferecem a circular pelas artérias, combustível para enfrentar os dias com maior calor e poesia.

8 comentários:

...dina disse...

me

...dina disse...

Ups... Mau começo! Antes de mais queria agradecer a simpatia de ter visitado o meu blog e apenas dizer isto: como portuguesa que sou não poderia mais concordar com o grande Manuel Alegre, poeta, político, Homem! A língua portuguesa é, e deve, ser composta de múltiplas facetas, cariz único que a tornam numa das línguas foneticamente mais ricas de todo o mundo!

Também adoro Jorge Palma, Sérgio Godinho e outros grandes compositores portugueses! A degustar!

Parabén pelo blog!

Anônimo disse...

Então o Manuel Alegre é a favor da união da nossa ortografia mas não quer que lhe tirem um "c"!
Discordo. Se começarmos com excepções, lá se vai por água abaixo a unificação.

ÁguaDiCoco disse...

cá entre nós que ninguém nos ouve...votei nele ;)
e irritou-me profundamente que lhe fosse atribuída uma conotação negativa para assumir a liderança do país só porque é poeta...ie, daquelas relações óbvias: poeta=> mau político. Não são afinal estes os mais sábios..(??)
Quanto à unificação da nossa língua, concordo que será impossível...somos demais a falar esta língua pelo mundo e seria uma tarefa além de impossível, desinteressante, porque acho mesmo que são essas diferenças que enriquecem a identidade de cada um.
Parabéns Maurette pelo excelente texto!

ÁguaDiCoco disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maurette disse...

Sou pela unificação, mas compreendo isto como a aceitação, pelos oito países de língua portuguesa, de uma gramática comum. Isto para mim quer dizer que, se uma criança escrever "facto" sem o "c" isto não será considerado erro, por exemplo. Não quer dizer colocar uma algema na liberdade de escolher entre escrever "ótimo" ou "óptimo", ou de acentuar ou não palavras como "idéia" ou "boléia". As peculiaridades dão sabor à língua, mas acredito que possamos,os oito, chegar ao entendimento de que, respeitado o básico da gramática, podemos ser diferentes e conviver com isso, podemos publicar os livros dos autores dos outros países com respeito e ter os nossos lá publicados da mesma forma... Inclusive os livros didáticos, que em alguns países africanos são extremamente caros, e que poderíamos exportar a baixo custo, uma vez acordada a unificação. Há muitos detalhes nesse assunto, mas o importante é que tenhamos uma enorme disposição para negociar e, assim, vencermos todos.

isabel disse...

muito complicado o consenso. então quando são muitos.

beijos

sombra_arredia disse...

"Aquele que escreve será traído
um dia algum leitor apontará
a palavra interdita
e o sentido escondido no sentido."


Manuel Alegre
in
O beijo de Judas