quarta-feira, 6 de junho de 2007

Aos copos, aos pratos, à vida

Meu estômago não tem a mínima queixa dessa viagem a Portugal. Jamais ficou vazio, em momento algum foi maltratado e nem teve qualquer dorzinha ou pesadelo que fosse.
Falar bem da cozinha portuguesa já é lugar comum. Até aí, nenhuma novidade; eu e o meu estômago já estávamos acostumados aos pratos que a nossa cultura absorvera, no geral e também dentro da família, entusiasta e simpatizante.
Mas, nos meus amplos e parcos 15 dias na terrinha, jamais comi ou bebi mal. E nem gastei muito, ao contrário de todos os prognósticos.
O primeiro jantar, no dia mesmo em que cheguei, reuniu toda a galera da Vera numa simpática taberna chamada Gran D'Elia, que de leve lembrou-me a Adega do Valentim, boa casa portuguesa com certeza do Rio. Lá, além de curtir a alegre companhia das pessoas, tão carinhosas e receptivas, provei um javali com batatas de fazer inveja ao cozinheiro do Asterix. E vinho, e sobremesa, e cafezinho... Um sonho!
No restaurante do senhor Armando, onde almocei várias vezes com a Vera e o Faria, tinha sempre uma novidade para mim, disfarçada de prato executivo - e todas elas deliciosas. Não faltavam o bom café e o pastel de nata (às vezes pudim, para variar um pouco), e as agradáveis fofocas com os dois, quase sempre inspiradas no que mostrava a TV de plasma.
No Chapitô, um restaurante lindo-lindo que visitei, maravilhada, por duas vezes - a vista de Lisboa é de tontear o coração! - provei um polvo à lagareira dos deuses e, na segunda vez, um chili com arroz que merece a minha reverência. Ah, e foi lá que conheci as proverbiais "imperiais" (o nosso chope no feminino), inclusive uma com limão que recordou-me os áureos "démi-panachés" da minha Paris de 30 anos atrás.
Com o Tiago, que me apresentou ao Chapitô, estive também no pitoresco "Anima-te o Garfo", um misterioso bas-fond todo decorado à anos 60 e repleto de objetos e fotos de cinema. Um charme! Tomamos groselhas, gosto de infância que por aqui não se acha mais, e provamos belas tostas em forma de coração (tostas são as parentes mais próximas do nosso misto-quente, e vêm com recheios variados ao gosto do freguês).
Estranhezas do paladar: os pastéis de nata da mais tradicional confeitaria da cidade, ao lado do Mosteiro dos Jerónimos, não me arrancaram suspiros, para perplexidade da Vera, da Ana e da maioria dos amigos. Bons, sem dúvida, mas sem o esperado caminhar nas nuvens rumo ao jardim das delícias. Será que as doceiras portuguesas que emigraram para o Brasil tinham segredos que os confeiteiros de lá desconhecem?
O Pavilhão Chinês é um caso à parte. O bar povoado de coleções - são milhares de objetos de todo tipo, cor e tamanho, selecionados ora por época, ora por estilo, e espalhados por um sem-número de vitrines, espaços e até salas inteiras - é um adorável túnel do tempo que jamais pode ser completamente percebido, nem que a pessoa se disponha a passar lá dias a fio. Disse-me a Vera que a limpeza das coleções é confiada a apenas duas senhoras, que têm dias certos para limpar cada conjunto. Benditas sejam, e que Deus as guarde, porque deve ser um trabalho insano. Para o visitante, porém, é uma festa! Foi no Pavilhão Chinês que a Vera apresentou-me à popular ginginha, a bebida mais tradicional da cidade, feita à base de cerejas e com cerejas boiantes na garrafa, sempre transferidas ao copo. A ginginha é doce, agradável e única. Mas fico imaginando o que pode acontecer se o sujeito se empolga e toma muitas...
No Porto quis-porque-quis provar as tripas, o que só consegui mesmo num dos supostos últimos dias (já falei que voltar ao Porto era mesmo um círculo vicioso), no restaurante da dona Helena, perdido numa romântica viela quase a desembocar na Ribeira. Isto porque o dia tradicional das tripas é quinta-feira, e era uma segunda... Mas não faltou o melhor vinho verde, tripas deliciosas com feijão branco e arroz e, de sobremesa, um bom pastel de feijão.
(Das francesinhas já falei.)
No Pinhão, bacalhau, bacalhau. De lamber os beiços. E também bacalhau com espinafres (as verduras todas sempre no plural) na Brasileira dos Armazéns do Chiado, ao lado do Faria. Isso sem falar nos inesquecíveis jantares oferecidos pelos amigos (antes da Vera, agora um pouco meus também), que levaram a culinária às raias do inimaginável. A Carla ofereceu-nos uma massa ao molho de camarão de fazer chorarem de emoção as pedras portuguesas do jardim em frente. E o Nuno, um bacalhau português de provocar uma migração em massa de seus colegas da Noruega para mares ainda mais gelados, onde jamais pudessem ser encontrados novamente.
Na volta de Estarreja, tardíssimo na madrugada, chovia no Porto uma chuva fina, esfriante. Tiago, Soraia e eu - famintos, claro - procurávamos sem sucesso um lugar para comer e, às tantas, demos com um barzinho de fim-de-noite, velho conhecido dos dois, que servia sandes (leia-se sanduíches). Nesse lugar provei meu primeiro sanduíche de chouriço, delirante, delicioso, num pão macio como deviam ser as iguarias saídas dos fornos do Olimpo. Provei o de lingüiça também, mas jamais vou esquecer aquele chouriço, que eles chamam de morcela...
No regresso a Lisboa visitei também o Procópio, um bar tão art-nouveau que me apeteceu pedir uma taça de champanhe. O Tiago, esse descobridor de tesouros que estava ao meu lado, não bebe... Mas mesmo assim brindamos, eu com meu champanhe e ele com sua groselha, à felicidade de estarmos juntos e ali, naquele lindo lugar.
A Vera, sempre bem-disposta e pronta para o que der e vier, carregou-me na última noite para os ventos gelados de Sintra. Tudo o que me lembro são largos degraus de pedra portuguesa, lampiões contra a neblina, um cenário saído de Eça de Queiroz. E a Taverna dos Trovadores que.... (o nome era quilométrico), comprida e funda, as mesas apinhadas, todos a ouvir o casal que cantava, ao violão, as mais várias canções. Tomamos boa cerveja, beliscamos uns amendoins... e a Vera decepcionada, porque o lugar, que seria palco de música tradicional e autêntica, tinha mudado o repertório, agora nada parecido com o que ela desejara oferecer-me. Mas Sintra ficou na memória para futuras explorações, quem sabe de dia e a céu aberto (ou não), e de preferência quando a Quinta da Regaleira for reaberta (hoje está em obras).
O último almoço, de rebentar botões, aconteceu no Tromba-Rija de Lisboa, a dois passos do escritório da Vera e do Faria. A alegre reunião de cinco - Ana Maria, João Paulo, Faria, Vera e eu - transcorreu na mais pura e absoluta comilança. O Tromba-Rija é um restaurante fantástico de comida exclusivamente portuguesa, onde o cliente come e bebe tudo o que quiser e agüentar, a preço fixo. É mais do que aquilo que aqui a gente conhece como rodizio, porque as bebidas também estão incluídas e a pessoa é quem decide o que vai comer. Não tem aquele negócio de garçom passando a toda hora na mesa, uma chatice que interrompe as conversas.
E lá provei de tudo, bebi os amigos, comi o ar de Lisboa, deixei-me levar pela tarde macia, grata por tudo o que tive naquela terra que logo iria deixar. Divertimo-nos muito, rimos à solta, como mostra a foto acima, e comemoramos a vida. À mesa, como convém... sobretudo em Portugal, Portugal.

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