quarta-feira, 23 de maio de 2007

Rituais (e amigos) de Lisboa



A cidade espreguiça-se longamente sobre as horas matinais. E não é veloz, mas feminina; estica-se sem pressa, talvez por saber-se dona de um tempo sem tempo. Essa modernidade doentia que costuma transformar as pessoas em seres cibernéticos, ligados no piloto automático, não a parece contaminar.

Às oito da matina, quando cheguei ao hotel onde supostamente iria ficar, deixei as malas e logo fui reconhecer o terreno mais próximo. Da linda praça dos Restauradores, ainda não lhe adivinhava o tamanho ou os segredos. Atravessei, com o tempo claro que me recebia bem - sem o esperado frio - e espreitei os correios, para comprar cartões telefônicos. Pessoas gentis e bonitas reconheceram-me a brasileirice automaticamente e dispuseram-se a ensinar como utilizá-los. - Este aqui fala para o Brasil, este para Portugal. Mas não os meta no telefone! Leia as instruções e marque os números.

Aliás, como usam o verbo meter! Metem gasolina, metem-se nas cabines, metem cartões nos telefones públicos...

Utilizar os tais cartões é uma operação complexa, que é preciso aprender com toda reverência e atenção. Há um primeiro número de 9 algarismos que deve ser digitado; logo abaixo há outro, coberto por uma superfície que se assemelha às nossas raspadinhas. Raspa-se este segundo número e, após digitar o primeiro e ouvir a telefonista dizer - Marque o número do seu cartão! - digita-se o segundo. Depois disso ela volta, informa o seu saldo e lhe diz para marcar o número de destino. Aí então você fala com quem quer mesmo falar.

A grande vantagem é mesmo o preço: um cartão de 5 euros dura uma eternidade em telefonemas para casa. E o cartão normal, para dentro do país, também dura muito.

Depois dessa ciência toda e de ter reencontrado a Vera, parti para conhecer o seu mundo.

A mocinha serelepe e determinada que fora minha companheira das aventuras e desventuras da faculdade de Jornalismo ali estava, com o mesmo coração gargalhante e o mesmo espírito de conquistar o mundo. Agora tem o seu próprio negócio, um charmoso escritório de design gráfico de nome tão revolucionário quanto ela: Golpe de Estado. Em instantes conheci o Faria, seu sócio, uma das personalidades mais fascinantes e inesperadas dessa viagem. Amigos, talentosos, instintivos, próximos a ponto de um ouvir e reconhecer, na respiração do outro, os mais diversos estados de espírito, esses dois foram o meu abrigo sincero, o cobertor no ombro contra o frio da isolada caverna, ao pé do lume, a contar estrelas e fazer com elas uma tiara que me protegeria contra tudo e contra todos.

Logo à noite fui cercada dos outros amigos, um clã que se entrelaça e forma a melhor rede para se pescarem bons sonhos. Nessa primeira noite, quando a Ana Maria inaugurava uma exposição de pintura e escultura num salão da Justiça, estávamos quase todos à mesa, a comer régia e portuguesamente e a comemorar, simplesmente, o existir.

(Devo esclarecer que o hotel desapareceu na bruma. Em toda a minha simplicidade de hábitos, não consegui subir 20 degraus com minha pesada mala pra duas semanas de Europa, nem tomar um banho ao perceber que o misturador do chuveiro não funcionava e que sequer havia uma tampa para o ralo da banheira. Vera resgatou-me antes que eu pudesse desgostar e abriu-me o coração da sua vida, que merece um capítulo à parte).

Em minha primeira madrugada já andava eu em bando, a rir pelas ruas de Lisboa, a vê-los alterar o cardápio escrito a giz na lousa da porta do restaurante, às gargalhadas, como meninos reformando a madrugada.

Já tinha o cheiro da cidade e os braços das pessoas a velar-me o sono que chegaria a seguir.

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