quinta-feira, 10 de abril de 2008

Os bons olhos de Pedro

Foto: Blog oficial Pedro Abrunhosa e Bandemônio

Nessa minha aproximação recente com a música de verdade que se faz hoje em Portugal, meus caminhos se cruzaram eventualmente com a obra de um artista peculiar: Pedro Abrunhosa.
Comecei ouvindo algumas canções, oferecidas por amigos de diferentes gostos e bagagens. De algumas gostei, de outras nem tanto. Mal eu sabia, porém, que ouvir e ver Pedro Abrunhosa seriam duas experiências absolutamente distintas.
Nos clips do YouTube ou em fotos, levei o susto inicial que todo mundo leva: por que diabo esse gajo está permanentemente com uns óculos escuros tipo "tala-larga", Matrix ou coisa no gênero, no rosto? Como tenho muito prazer em sentir os olhos das pessoas, a tal viseira cibernética, confesso, me incomodava um pouco.
Ocorre que, como dizem os portugueses, calhou de eu ter a oportunidade de topar com Pedro Abrunhosa na Queima das Fitas de Coimbra, em maio de 2007, exatamente no mesmo dia em que conheci o Jorge Palma. Abrunhosa e sua Bandemônio iriam apresentar-se logo depois dele e, na porta do camarim do Palma, acenou-me por trás do vidro blindado que trazia no rosto (o que pouco quer dizer, pois do lado de cá da fortaleza eu jamais conseguiria saber se ele chegou a ver-me ou não). De passagem para o palco, envergando um agasalho fechado até o pescoço e cercado de seguranças, o proverbial microfone à la Madonna já devidamente acomodado, abraçou afetuoso o Jorge e lançou em minha direção o tal aceno.
Acabei descendo para espiar um pouco o show. E é inacreditável a pirotecnia com que toma o palco de assalto, com um gestual plenamente compreendido e estimulado pelos fãs à beira do delírio. A apresentação tem direito a tudo: corinho de vozes femininas, iluminação elaborada, muito clímax e empolgação. E os óculos do Robocop sempre lá, que coisa.
Aquele êxtase todo logo me cansou; distraí-me a observar os estudantes, seus uniformes e as bebedeiras normais em eventos assim. Lá para as tantas, porém, Abrunhosa modificou o ritmo das coisas e aproximou-se muito de ser alguém real (sem contar os óculos, claro). E foi no momento em que dirigiu-se ao piano é que o compreendi um pouco melhor. Se não fosse o portal eletrônico do universo paralelo que lhe toldava o rosto e o impedia de partilhar a emoção que os poucos traços do rosto deixados de fora denunciavam, teria sido uma bela viagem. Ali ao piano, só com suas canções e poemas, Pedro Abrunhosa enfim falava a minha língua.
Aquela história dos óculos, contudo, me parecia um tanto ridícula. Toda a gente em Portugal, porém, dizia que "é o marketing, a persona dele". "Olha que ninguém jamais lhe viu os olhos..." Fiquei a pensar em como alguém capaz de escrever canções tão íntimas como as que executara ao piano, podia adotar uma persona tão diametralmente oposta àquela natureza cândida, tão recatadamente preservada da curiosidade alheia.
Um dia, ouvia um programa de rádio e lá estava o Pedro, engraçado e gaiatíssimo, como convidado especial, perturbando o juízo de todo mundo. Não entendo nada desse cara, pensei.
Mas um dia, um dia assim sem mais nem porquê, tive a chance de ver duas fotos (antigas, claro) do rapaz sem os óculos! Nuzinho no corpo da face!
Naquele momento entendi.
Com olhos, é doce e direto; é menino, tem ares de amigo, é possível e perceptível. Sem olhos é distante de si mesmo, o ar até agressivo, como se estivesse acima das coisas prosaicas da vida.
Com olhos é comum, mortal, gente - alguém que poderia passar por nós na rua sem ser notado. Há um tênue acanhamento, uma coisa encabulada e generosa que ninguém pode ver sem sentir vontade de botar no colo, acudir, contar história para dormir. Sem olhos, brande uma espada de luz a braças e braças de distância de todo mundo.
Pedro Abrunhosa é, sim, dado a ares teatrais, mas essa não é a sua verdade, sinto-o. A persona deve ser incômoda e sufocante como um escafandro precisando de reparos. Com olhos, é a pessoa que gosto de imaginar ao piano, dedilhando romanescamente os sentimentos que toda a gente tem, num momento ou noutro.
Cheguei à minha própria conclusão sobre aquele Pedro que oscila entre o espelho do coração e a tentação de Darth Vader. Talvez pense que só a persona o faz forte, o que seria um erro; forte ele é ao piano, entranhado nas canções, totalmente humano e próximo como alguém que bebe à nossa mesa. Ou talvez ache que os bons olhos boiados de eterno não sejam tão especiais quanto a máscara da face. Mas eu garanto que são, são sim. Mais que isso: destilam sinceridade e o tornam muito mais resplandecente do que aquele polimento vítreo, escuro e impessoal que tomou conta da persona.
Olhar para uma foto com olhos e depois para outra sem olhos faz a gente imaginar que alguém tenha lhe sugado a alma e condenado a vagar atado à escuridão.
Sinceramente? Vou adorar se, um dia, receber a notícia de que o talentoso Pedro Abrunhosa finalmente resolveu dar uma chance bem grande aos seus bons olhos.

2 comentários:

Anônimo disse...
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