sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Umas vezes estou redondo, outras quadrado, outras cheio de picos, outras liquefeito

Pablo Picaso, Arlequim (circa 1915) - Coleção do MoMa/NY

Como homenagem, uma crónica do António Lobo Antunes, um dos maiores autores portugueses, nessa sua fase cálida de vigorosa transparência, quase cristais de palavras, uma comovente proximidade da alma de tudo

O HOMEM QUE SE SENTIA LOSANGO

António Lobo Antunes

Umas vezes estou redondo, outras quadrado, outras cheio de picos, outras liquefeito, outras não estou sequer: deslizo por aí armado em nuvem

Hoje pensava almoçar com os meus camaradas da guerra. Entrei no restaurante e não encontrei nenhum deles. Apenas o empregado que me barrara a saída umas noites antes porque me ia embora esquecido de pagar a conta. Desta vez sorriu-me. Se calhar continua convencido que eu não queria pagar. Bom, como os meus camaradas não estavam fui a uma pastelariazinha ao lado e pedi um miniprato de almôndegas, um copo de vinho branco, uma mousse de chocolate e um jornal qualquer. Não tirei os olhos do jornal até ao fim da mousse e não me lembro do que li porque levei o tempo inteiro a pensar na minha vida, isto é as ideias vagueavam sem se deterem entre episódios de antigamente e episódios de agora. E a mesma pergunta, sempre, o que fiz da minha vida, o que vou fazer da minha vida, isto numa pastelariazinha de bairro onde muitas pessoas, sobretudo mulheres, engolem qualquer coisa apressada e barata, de pé, apoiando-se ora num tornozelo ora no outro encostadas ao balcão. Os empregados, em mangas de camisa, cirandam a correr entre as mesas. Gosto de os ouvir gritar para a cozinha

- Sai isto, sai aquilo

e das senhoras velhas, muito pintadas, que ocupam sempre o mesmo lugar, cheias de anéis nos dedos gordos. Não têm corpo, têm sucessões de pregas. Brincos que cintilam. Colares exagerados. E olhos graduados como réguas a medirem quem entra, de pestanas que parecem antenas. De vez em quando uma delas parte uma perna e encosta ao lado da cadeira canadianas majestosas. Pela abertura do gesso as unhas escarlates medem-nos também. De tempos a tempos folheiam revistas sobre divórcios de actores de telenovelas e outras criaturas correlativas, comentam, têm opiniões. Palavra de honra que faz impressão unhas escarlates a espiarem do gesso, cinco unhas de tamanho decrescente como elefantes alinhados numa prateleira: nas retrosarias não são caros. A seguir ao almoço, ao chegar aqui, o telefone tocava: uma voz feminina à procura do meu primo. Disse-lhe que não o tinha visto. Perguntou como podia encontrá-lo. Respondi que não sabia e sugeri-lhe que abrisse a janela e gritasse o nome dele. Podia ser que a ouvissem, Lisboa não é assim tão grande. Ficou a duvidar de mim, chegou ao ponto de insinuar que eu não falava a sério. Depois reflectiu melhor e concordou em experimentar. Se experimentou, pela minha parte não ouvi nada. Pode dar-se o caso de morar longe e assim sendo é provável que em Sintra ou na Amadora a hajam escutado. Isto se a não levaram para o hospital psiquiátrico ao segundo berro.

Quando eu era pequeno, em Benfica, havia mães que chamavam os filhos dessa forma, ao fim da tarde. Aposto que até os bichos no Jardim Zoológico se arrepiavam todos, hienas incluídas. Mas essas são fáceis de arrepiar, andam sempre de pêlo levantado nos documentários da televisão.

Antes de começar a pensar no livro, ou seja na morte da bezerra, liguei a um camarada meu: o almoço é para a semana. Interessou-se sobre como é que eu estava, eu que nunca sei como estou e sou incapaz de responder

- Vamos andando

sobretudo quando estou sentado

- Como estás?

é uma bela questão. Normalmente respondo

- Sei lá

porque não gosto de mentir. E sei lá de facto. Umas vezes estou redondo, outras quadrado, outras cheio de picos, outras liquefeito, outras não estou sequer: deslizo por aí armado em nuvem.

- Como estás?

e é impossível responder

- Deslizo por aí armado em nuvem

de modo que me calo ou resmungo sons desconexos. Não sou de todo mau em sons desconexos, tenho anos de treino. Escrevo isto e sinto as almôndegas a conversarem comigo: despenharam-se-me na barriga feitas pedregulhos, rebolam cá por dentro num fundo de puré, meio dissolvido pelo vinho branco: é o que acontece a quem se mete com minipratos. Devia ter pedido bicos de rouxinol. Ou ter acertado no dia do almoço com os meus camaradas de guerra a lembrar os maus velhos tempos

- Sai uma de bicos de rouxinol para a mesa doze

e a cozinheira lá dentro a prepará-los.

Se me interrogarem

- Como estás?

explico que não estou redondo nem quadrado. Neste momento acho-me mais uma espécie de losango.

- Estou losango

quem interroga a olhar para mim sem entender:

- Losango?

e eu

- Sim, losango, nunca te sentiste losango?

Nunca se devem ter sentido losangos. Há alturas em que me acontece pensar que as pessoas são esquisitas mas deve ser problema meu. Aposto o que quiserem que é problema meu.


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