segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Ar-de Novembro (4)

Tatajuba, Ceará - Foto: Mário Ptasik

Aquele desconforto pesava-lhe, enquanto percorria cabisbaixo os poucos passos até seu quarto, no mesmo andar. Tinha mais era vontade de desfazer o tempo veloz e sôfrego que o impelira a saltar de tamanha altura sem rede de proteção, mergulhar com tal fúria no desejo e no pré-amar. Não podia ter sido, ardiam-lhe as têmporas em alerta. E agora tem amanhã e os outros dias, não sei que fazer, penso nisso depois, repetia por dentro, na segurança relativa dos próprios lençóis, onde buscava a anestesia do sono.

Estática diante da madrugada que se anunciava sobre o mar, Brasuca desentendia o tempo. A mala semi-desfeita, algumas roupas no armário, objetos a familiarizar-se com o banheiro. E aquele abismo enorme aberto na cama, nos sonhos, o calor ansiado que não esquentou lugar pelo corpo. Talvez fosse melhor gastar a insônia guardando tudo de volta, desaparecer logo de manhãzinha como se tivesse sido só um sonho mau, na verdade não estivera ali, nem o ouvira dizer que lhe era impossível dormir ao lado de alguém com quem não tinha intimidade, e isso exausto depois dos fogos de artifício, de olhá-la demorado, desenhar-lhe o cabelo...

Claro que pensou que era brincadeira, mais uma gracinha amorosa com ar sério, mas não, não era. E quase por instinto quis logo cobrir o corpo, proteger a sinceridade subitamente desguarnecida do vento da indiferença. Engraçado, sorriu amarelo, os olhos afundados, eu vim aqui com o coração, não com o corpo. Houve até um ensaio de protesto, eu também estou com o coração, curativo de emergência que os olhos já não confirmavam.

Incapaz de desgrudar do telefone, Brasuca até conseguia manter uma certa calma. Tinha um discurso interno para tentar ignorar tantos metros de ausência, o sem-tempo-sem-vontade que parecia condensar em gelo seco a sua espera quase ateniense. Detestava ter que admitir, mas Portuga, aparentemente, tinha mais que fazer. Às vezes se irritava, fazia menção de jogar a toalha, droga de gajo esquisito, avisa que vai chegar mas não dá o ar da graça, ah, é assim?, pois eu também não vou ter tempo, mas acabava por catá-la e pendurá-la de novo; bebia um pouco d’água e enxugava o tempo para ver se passava mais depressa.

Tens colo pra eu poder dormir? Havia que atravessar a impaciência dos dias, das horas, da conversa boa envolta em mil dedos de cuidado, sim, tenho o colo guardado, artes de pedreiro a levantar paredes de escusas, espreguiçado na alegria quase ultrajante de sol claro e céu azul, a emoldurarem os verdes mares cheios de sal e promessas. E por que terá o colo guardado, o tom sempre exemplar da conversa inteligente, um gosto de quem-sabe-isso-passa a escorrer de cada palavra, muitos sorrisos de medo ou reticência, as roupas novas do quase-enxoval desfalecidas nas gavetas e cabides.

Em novembro o verão se espalha sorridente depois da chuva, a beleza e a maresia são contagiosas. Portuga, fiel à estratégia do lagarto, gasta as manhãs a admirar as saias (saias?) de quem vive pelas praias, como tão bem disse um dia o Chico Buarque, com afeto e açúcar. Brasuca, mergulhada na azáfama dos dias, deixa escapar só um suspiro de longe em longe, sublinhado por um arremedo de sorriso, já que não liga mesmo, fazer o quê, né?

O curioso é que, mesmo assim desencontrados, sabiam achar graça um no outro. Não haviam desaprendido o riso, a suavidade, uma certa delicadeza que não era necessário disfarçar, malgrado o susto riscado na pele. Nos braços da pródiga natureza que os alimentara e frustrara com tanta rapidez, conversavam sem tempo, palmilhavam a praia e o vento bom das noites, alegravam-se na mútua presença. Mas a noite alta invariavelmente os separava, ele culpadíssimo, ela desapontada de dar dó.

Acabou falando por insistência, mensagem de texto era bem mais confortável. Não desgostou de rever-lhe a voz, mas preferiu deixar no ar o possível, no feriado ia dormir, sexta não dava tempo, ela afogava-se, sábado e domingo já tinha compromisso, ela mordia-se de raiva, o pessoal do meu trabalho, e pra frente a gente vê.

(Continua)


Um comentário:

bruno cunha disse...

Muito bom!
Gostei bastante do texto, em forma algo contemplativa, quase como se a descrição fosse 1 monólogo interior do narrador, repartido por cada 1 dos pensamentos das duas personagens...
;)