quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Ar-de Novembro (5) - Final


ao grande José Luís Peixoto, em nome da beleza
com que nos incendeia os dias




Copacabana, de manhã - Foto: David J



um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços.

o poema do José Luís Peixoto, pensou que era pra ela, a muitos nós de distância do tempo que ficou parado no mar de Iracema, nos lábios de Iracema que enfeitara para o amor, amor não quis, longe dos dias de silêncio e chamas, terna despedida, tu voltas, eu vou ter contigo, adoro, terei saudades

de longe os olhos se viciam
inventam

a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.

Crescem as mensagens no celular, encolhem as palavras sonoras e quentes, emails rareiam, muda a gramatura do tempo, Brasuca sente. Feito torção antiga, que dói em véspera de chuva. Não vem mais, é o trabalho, então vou eu, não venhas, ando ocupado, conheci um pessoal fantástico por aqui, incerteza aguda mas com cheiro. E de perfume. Brasuca agarra-se ao caule trôpego da saudade, espera-me domingo bem cedo, não posso, já tenho coisas combinadas

Caiu mal por dentro aquele plural indefinido, raiva e ciúmes já temperados na desconfiança. Portuga fez-se de ofendido, Brasuca amargurou-se na distância, nunca consigo ligar, por que será? A dor de já saber o que não se sabe. Forçou-se a um silêncio digno, muitos muitos dias, a alma gotejava.

um dia, quando a chuva secar na memória,
quando o inverno for tão distante,

Novembro já no fim, um diante do outro sob o mormaço, vidas e vidas se encontram na praia, ao sabor da caminhada, Portuga ensolarado, alegria e dois dedos de conversa, não ligou, ah mas tive de viajar, voltei, pois é, olha, sábado saio mais cedo, nos vemos, sim comemos qualquer coisa por aí, eu ligo, tá bem

A maciez do sábado amanhecendo, ela esticada num sorriso de quase-festa, melhor não pensar muito senão dá azar. Horas calmíssimas a correr conforme o relógio, claro que vai ligar, combinou, olhos nos olhos, foi por que quis mesmo. Tempo suficiente para tudo, por dentro e por fora, alma lavada com amaciante e passada em temperatura baixa, especial para sedas.

quando o frio responder com a voz arrastada de um velho,

oito e meia, nove horas, nove e meia, dez, reticências... Mensagem de texto às dez e meia, para o caso de algum imprevisto. Estranhou porque ele sempre respondia, dessa vez não, olho comprido no telefone - e ora, paciência!, é engolir no sono essa noite fervida e requentada.

estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela.

cada osso do corpo incomodava, talvez fosse assim se um trator passasse por cima da gente, se pudesse não ter ouvido aquela voz feminina amanhecendo do outro lado da linha, diz-me em que lado da cama dormes que vou deitar do outro, também quem mandou esquecer que lá não tinha horário de verão, um momento por favor, um oceano até Portuga despertar das profundezas e morrer em nervosos monossílabos, não posso dormir com quem não tenho intimidade, poucas palavras humilhadas e depois os emails a esfaquearem as lembranças, Portuga explodido em fúria com todas as suas faces contundentes, Brasuca jurou que não ia ler as palavras não medidas devastando implacavelmente as papoulas da sua ternura, e depois o vácuo.

sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha,

Só no dia seguinte é que achou os emails desmaiados na sua caixa. Um Portuga aflito, novidade para ela. Não consigo ligar, chama até cair, não estás em casa, não estás na net, espero até meia-noite depois vou-me embora, não sei que fazer...

Foi demais para um novembro inteiro a equilibrar-se na incerteza. Brasuca desatinou, destravaram-se as águas do fundo, maremotos e cataclismos se revezaram nas veias durante horas, derrubaram as cercas do dia seguinte e invadiram dezembro com toda força.

porque eu acordarei nos teus braços
e não direi nem uma palavra,

Não, não foi bem assim, pensou Brasuca entre uns bons bocejos, quando se deparou de novo com o poema do José Luís Peixoto – justo esse! – a bailar no meio do livro que acabara de abrir, presente do Portuga por correio aéreo. Acho que, pensando bem, eu mudava um pouco isso... me perdoa, Zé, ousou rindo, a intimidade do tratamento garantida em nome do amor às palavras. Pensou e revolveu-se um pouco mais na cama, o dia recém-amanhecido preguiçoso que só, espiando entre as cortinas entreabertas.

nem o príncipio de uma palavra,

Portuga encontrou o postal logo que abriu a caixa de correspondência e regalou-se com a bem-humorada visão de uns bons pares de derrières bem brasileiros rebrilhando ao sol, sob a escassa moldura dos biquínis coloridos, objeto de cobiça de mais de um cronista laureado – e de pobres mortais fadados, como ele, a cultivar invernos europeus com os olhos pendurados na memória de alguma praia tropical. Adorei o livro, obrigada, sorria Brasuca, e o sorriso dela ocupava mais espaço que a sugestiva fotografia da frente. Portuga até estranhou, mas o fato é que era assim.

para não estragar
a perfeição da felicidade.

(José Luís Peixoto, Um dia)






Um comentário:

Anônimo disse...

"As palavras são, tantas vezes, feitas daquilo que que significamos.E somos o vento,os caminhos do vento sobre os rostos.O vento dentro da escuridão como o único objecto que pode ser tocado.Debaixo da pele, envolvemos as memórias, as ideias,a esperança e o desencanto"
J.L.P
in
Antídoto

:))