quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Laços pela vida (enquanto houver ventos e mar)

Lisboa e Saquarema


Na viagem de carro por estradas próximas, tortuosas, procurava não pensar muito no encontro que teria, daí a umas duas horas. Tentava dormir para ganhar forças, mas não consegui direito; um cochilo aqui, outro acolá, entre os fatos recentes e as muitas expectativas. Sabia que começava a entrar na metade brasileira de uma história de outros, depositada com cuidados extremos no meu colo. E que teria de tratá-la com cuidados ainda maiores.

E tudo começou em Portugal, há mais de cinqüenta e menos de sessenta anos, algo por aí. Um homem positivamente encantador, artístico, alegre e cheio de possibilidades - pelo que me consta - casou-se um dia, teve um filho. E separou-se da mulher pouco depois. Mas o filho, ao longo da vida, teve pai para conversar, admirar, divertir-se, discordar, dar-lhe voltas e abraços. Pois esse homem de muitas possibilidades tinha a esperança sempre aquecida, dentre as muitas chamas que carregava dentro de si. E amou de novo. Casou-se com uma jovenzinha cheia de viço e alegria de viver, muitos anos mais nova, que não hesitou em enfrentar a família para viver o grande amor que escolheu.

O filho primeiro, então rapazote e sempre vivendo com a mãe, coube com a maior naturalidade na nova família do pai. Talentoso, traquinas, imprevisível e fascinante por natureza, tornou-se uma espécie de xodó da madrasta, mais próxima dele em anos que do próprio marido, e também da família desta. Algum tempo depois acabou por ganhar uma irmã e, anos mais tarde, mais um irmão.

A estrada serpenteia noturnamente, e eu espero, aquietando o coração. É perturbador tocar quase de perto em memórias adormecidas no coração alheio, mas sinto que as pessoas que me esperam estão felizes com isso. O vento da noite esfria, sinto por dentro um frio ainda maior, que me desaloja um pouco de mim mesma, mas mesmo assim confio no melhor que há de vir.

A vida poderia transcorrer sempre assim, o irmão mais velho adolescendo e adultejando entre as duas famílias, de um lado a mãe, do outro o pai, sua nova mulher, os irmãos e tudo bem. Mas ele possuía um coração inquieto, e isso, em que pese ser às vezes grandioso, é muito muito perigoso. Brilhou, transgrediu, modificou o tempo à sua volta. Deixou pegadas fortes, marcas profundas. E seguiu sua vida guardando dentro algumas saudades boas. O pai, de quem tinha herdado a inquietude básica de viver, também fez novas escolhas: de armas, bagagens e coração cheio, mudou-se com a família para o Brasil, para a beira do mar da Região dos Lagos, onde decidiu abrir uma pousada e viver na amplitude.

A menina tinha dez anos, algumas raízes, saudades de muita coisa, sobretudo do irmão mais velho, já homem, com seu piano ardente, poesia em riste e paixão absoluta por viver a vida. Trouxe-o para cá em seus guardados de criança que lembra e resiste, e a seu modo cresceu com ele.

Estou quase na Linha Vermelha, os restos da Baixada para trás. O trânsito está bom, pistas vazias, vento a favor. Ao subir o viaduto em frente ao Hospital do Fundão, toca o celular. Sim, estou chegando, respondo. Falta muito pouco, menos que quase nada. E logo...

O pai, dentro da sua imensidão, acabou por separar-se de novo. E casar mais uma vez. E os três filhos viraram mesmo cinco. Não tão longe, ainda pela orla do mar, vivem os outros dois: um rapaz, hoje com 25 anos, e uma jovem de 17.

Ao longo da vida os irmãos se encontraram muitas vezes. O primeiro, que ficou em Portugal, chegou a emigrar para outro país europeu nos tempos difíceis sob a ameaça da guerra do ultramar, mas voltou e continuou a fazer diferença, na música e na poesia.
Casou algumas vezes, teve seus filhos também, soube seguir os próprios sonhos. Os outros, abrasileirados e brasileiros, firmaram pé por aqui. A menina cresceu, casou e mudou-se para o sul, teve duas filhas que tambem cresceram. Os outros três ficaram aqui mesmo no Estado do Rio. Mas os laços permaneceram, lindamente bordados na seda da lembrança e da saudade.

E agora estou eu em meio a essas relíquias familiares, penso, enquanto o automóvel entra na Avenida Atlântica. Tudo por conta da amizade bonita e recente com o irmão mais velho, que confiou-me a saga e garantiu que eu devia conhecer a sua irmã. Tenho, sim, prazer em aprofundar-me e reconstituir as partes separadas pelo mar, mas unidas na alma. Com cuidado, com jeito, pé-ante-pé, aproximo-me devagar.

Olho para a menina e sua filha, sua mãe, o padrasto. Os pequenos passos que faltam para o primeiro abraço parecem léguas, milhas enormes a percorrer. Mas o vento ajuda, o cais recém-construído ao pé da areia de Copacabana também. E logo estamos juntos a percorrer de volta os passos da aventura, a rir de mil e uma histórias memoráveis, a evocar o personagem do irmão querido, do tio inquietante e encantador, desse elo indescritível que de repente nos une numa celebração em que fala a voz do sangue, mas fala também o poder transformador, mágico, da amizade e do entendimento.

A noite alta embala os meus sonhos pela estrada, caminho de volta necessário, ainda que longo. São mais de quatro da manhã quando faço menção de deitar-me após a jornada rumo ao fundo de tanta coisa. O corpo falha, mas o coração, mais que acarinhado, grita muito de alegria.



4 comentários:

isabel disse...

desencontros

encontros

enquanto houver mar. e ventos

e beijos meus

bruno cunha disse...

olá!
julgo que este teu post tem muito da biografia da tua família, certo?

Anônimo disse...

"...
iremos pelos campos
à procura do silente lume das cassiopeias"


Al Berto





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é como te disse amiga: tava escrito no céu esta vossa saga; e que feliz que estou por poder apreciá-la contigo...de poder ter visto os teus olhos a se incendiarem, de poder sentir toda a magia que aconteceu :)
Beijos de luz*

ÁguaDiCoco disse...

so esta faltando mesmo essa visita do JP ao Brasil...e todos os elos se reconstituirão.
beijinhos!