sábado, 28 de julho de 2007

Pedacinhos da cidade


São coisas pequenas, aparentemente comuns, como esse painel antigo em vidro pintado, de uma loja tradicional, como a Paris em Lisboa, que me encantam pelas ruas da cidade. Em Lisboa eu andava sempre a esmo, à cata de nada, e no entanto a toda hora topava com esse tipo de riqueza. Que vem do respeito, da preservação, do cuidado em criar uma convivência saudável entre o antigo e o novo. Minha amiga Vera disse-me uma coisa que ficou na cabeça; talvez o que ela mais goste na Europa é o fato de ser um continente velho. Entendo-a bem. Você pisa diferente numa calçada antiga, diante de uma fachada antiga e bem conservada. Entra diferente numa loja centenária, onde o balconista trabalha desde rapazote e ainda está lá, os cabelos brancos e o falar pausado, guardando a memória com orgulho.
Fiquei um bom tempo diante da Paris em Lisboa para fazer a foto do painel. E este foi o melhor resultado que consegui; não houve como escapar do poste, e felizmente a senhora aqui retratada compôs com o cenário, porque muitas outras pessoas antes atravessaram-me à frente, estragando a poesia dos dizeres dourados pintados com cuidado sobre o vidro.
Desde a primeira vez que fui aos Armazéns do Chiado com o Faria, descendo a rua a partir da Brasileira, o estabelecimento que mais me fascinou foi uma ourivesaria cujo nome não me recordo. Por dentro, tudo é ouro e azul. As prateleiras e vitrines em decapê dourado, as paredes em azul com afrescos lindíssimos ao topo. Ficava sempre à porta, prendendo a respiração com medo de que fosse um sonho e se desfizesse no ar ao menor movimento. Nas vitrines, jóias, relógios e outros objetos muito requintados, mas esses nunca me impressionaram mesmo. A magnificência da loja é o que contava, e confesso que até pensei em comprar algo que alcançasse o meu bolso, só para entrar e ficar por algum tempo ali, em comunhão com aquela beleza que me fazia desejar ter vivido antes, bem antes, num tempo em que todas as lojas fossem assim, imemoriais cada uma a seu jeito.
A Casa Varela, que vende artigos para pintura na Rua da Rosa, é outro lugar inigualável. Poucas vitrines, muito despojadas, e alguns itens em prateleiras soltas à frente do interminável balcão em madeira e vidro, as rugas e entalhes ocasionais no tampo a contar praticamente todas as histórias dos artistas que por ali passaram. Ao fundo, gaveteiros obedientes a guardar pincéis, solventes, anilinas. Um biombo bem ao estilo dos que havia no ateliê de fotografia do meu avô separa-nos das prateleiras infinitas onde ficam os tubos de tinta. O Faria garantiu-me que ali encontraria o que há de melhor, e foi buscar para mim o material para aquarelas que pretendia oferecer à minha irmã. Voltou com sete ou oito tubos, garimpados lá dentro. Escolhemos também um papel especial e alguns pincéis de qualidade, sintética e politicamente corretos. Deixei-me ficar um pouco diante das paredes nuas, do tímido escritório que não passava de uma ou duas mesas a um canto do biombo, à direita, e da simpatia do dono.
Ao dobrar a esquina dei com a Pensão Londres, que me pareceu bucólica e agradável, e pensei que poderia ser um ótimo pouso numa próxima vez. Não sei direito por que, lembrou-me o Grande Hotel de Paris, que elegi como minha casa na cidade do Porto. Aliás, não deixa de ser curioso o fato de eu ter encontrado, em terras portuguesas, locais tão simpáticos chamados "Londres" e "Paris"...
Quando caminhei ao encontro do Tiago, na direção das Amoreiras, passei por uma rua linda, cheia de antiquários. Mesmo ao pé dela, o Faria disse-me para ficar atenta a uma loja de vidros chamada Marinha Grande - na verdade um depósito da produção daquela localidade, que há séculos faz do vidro arte e sobrevivência. Entrei e vi coisas incríveis: garrafas azuis, verdes, marrons, transparentes enverdecidas... pequenos frascos de botica, iguaizinhos aos que havia na farmácia fechada do meu tio João, que fascinava-me quando menina... e centenas de outros objetos que por cá não se encontram mais. Não levei nada porque foi inevitável pensar na bagagem e na tristeza de ver porventura quebrada qualquer uma daquelas preciosidades. Mas guardei-lhes o cheiro do eterno.
Disseram-me que naquela rua ficava a última morada de Amália Rodrigues em vida. Procurei até, mas não encontrei a placa na porta. De todo modo, acho que sim, aquele recanto em curvas suaves e portas escuras, a ferver com a memória dos tempos, combina muito bem com o que me lembro dela. Esse tipo de delicadeza é o que sempre hei de guardar, e buscar de novo quando puder voltar, dessa Lisboa de mil encantos e de todas as idades.

4 comentários:

Anônimo disse...

Por vezes não basta viver em Lisboa para a amar mas sim tê-la no coração.

Anônimo disse...

[...]
"sete colinas no dorso
e uma cidade pra mim."
[...]


P.Abrunhosa
in
Ilumina-me

bruno cunha disse...

Antes de mais nada gosto bastante dos teus retratos escritos sobre este nosso país (repara, disse nosso, pois da maneira como falas de Portugal é como o país também fosse um pouco teu.
Depois só tenho de ficar agradado com o teu comentário no meu blog. És sempre livre de apereceres quando quiseres.
Por último, tomo a liberdade de adicionar este teu blog ao meu.
Muito obrigado.
Bruno Cunha

isabel disse...

agora levaste-me à minha infância, quando ia com a minha mãe ao Paris em Lisboa comprar turcos e jogos de cama...e tecidos para fazer os "kilts" de inverno...

que saudades!

(eu traduzo no msn...lol)