sexta-feira, 29 de junho de 2007

Fado na alma


Faço hoje um parêntese nos relatos de viagem - viagem propriamente dita, em que se sai de um lugar e vai-se dar a outro. Há outras viagens, e ontem fiz uma dessas; a viagem ao contrário, em que se está num lugar e recebe-se na alma um outro. Regressei de Portugal há mais ou menos uns 40 dias, e no entanto ontem recebi-o de volta. Quase inteiro e com todos os gostos e cheiros. Com um dos lados da alma, o mais sombrio e denso, o mais profundo, triste só quando necessário.
E isso se deu com Mariza.
Não a conhecia - não de fato, só mesmo de fotografias e de umas poucas faixas em áudio. Isso quer dizer que não a conhecia. Sim, porque para conhecer Mariza é preciso vê-la em cena. É perturbador ver aquela força da natureza, esguia, flutuante, muito bem vestida - de preto, como convém a uma autêntica fadista - entrar pelo palco e dominá-lo inteiramente, e de chofre, com um único olhar.
Acompanhada de uma verdadeira orquestra - violinos, cello (pelas mãos do convidado especial Jacques Morelembaum), guitarra portuguesa, guitarra acústica, guitarra baixo e percussão - Mariza deu-se a conhecer, fibra por fibra. E mostrou o furacão que é.
Com Mariza a emoção é bruta e elegante a um tempo; despedaça-se e recompõe-se com artes de grande atriz, sem cair, em momento algum, na pieguice ou no excesso. Aliás, até o excessivo próprio do fado vem com sutileza, com contornos dançarinos, com luz e sombra dignas dos mestres espanhóis. Mariza é luz e sombra, é toda sons puros, cristalinos, fortes, graves, agudos, agrestes, cavos, fundos, por vezes abertos e espraiados como um mar de música. Mariza canta com os olhos, as mãos, o organismo inteiro e, com o corpo, faz eco ao que vem dos músicos, para depois apropriar-se disso e traduzir tudo com sua voz de incrível claridade e poder.
Barco Negro. Silêncio e pouca luz a emoldurá-la, como um farol distante. E as mãos do percussionista na caixa. São looouuucaassss..., escutava-se em pianissimo e logo após num crescendo, como se a voz viesse duma enorme caverna solitária. Súbito, mais forte, mais perto, mais dentro. E na segunda parte, a coroar o absurdo de beleza, as guitarras entram todas de uma vez, sob o vermelho-vinho insinuado pela primorosa iluminação.
Depois, o alívio, o carinho, o bater de palmas, o partilhar generoso de lembranças com a colônia portuguesa. Impossível não se emocionar com a emoção de toda aquela gente e suas saudades, que eu como recém-chegada da terrinha posso entender com cada veia do corpo. Mariza, não a estrela, mas o ser humano a falar da sua terra, das raízes e da família, na presença do tio há 30 anos no Brasil ("Já é brasileiro, o meu tio!") e da prima ("... e a minha prima, nasceu aqui! Viram? Não são só vocês que têm família em Portugal; eu também tenho família no Brasil!").
E muitos fados mais, alguns tristes, outros desesperados, outros alegres e brincados. No momento mais íntimo, só a voz, guitarra portuguesa e guitarra acústica, sem microfones. Do jeito que aprendeu quando criança, na taberna dos pais, na Mouraria. E o mar de gente mais silencioso que já vi na vida, como a sacralizar a tradição.
No retorno à cena após os incessantes aplausos e gritos de "Volta, volta!", outro presente: "Fascinação", acompanhada somente ao cello por Jacques Morelembaum. Mariza toda voz e toda terra. Mariza, simplesmente. E todo o povo sem respirar.
Mariza foi minha melhor viagem de volta, em tão pouco tempo, a um Portugal ainda tão presente cá dentro.

4 comentários:

Orlando Gonçalves disse...

E mais uma vez a emoção de ler estas palavras escritas por ti, um arrepiar que percorreu todo o meu corpo e que encheu toda a minha alma, das palavras escritas senti o fado no seu melhor "O Barco Negro", cantado pela Mariza. Não estive lá mas pela descrição o meu coração bateu mais forte ao compasso das palavras escritas e uma lagrima rolou sobre a minha face.
Continua assim a escrever desta maneira tão tura e com tanto sentimento. Obrigado por gostares tanto assim deste pequeno país.

isabel disse...

ai que saudadessssssss

já me fazes falta

volta depressa linda

isabel disse...

mariza, jorge, sérgio, manuela, david, pac...

temos tanta sorte!!!

ÁguaDiCoco disse...

Nossa, nque descrição maravilhosa...!!
Quem dera que os portugueses em geral, soubessem valorizar a nossa música so um terço dessa descrição ;)
Grande Beijo