sábado, 19 de janeiro de 2008

Ar-de Novembro (3)

Foto: Eliezer Sanchez - www.flickr.com


Por vários dias, o sol negou fogo. Manhãs cinzentas e preguiçosas sobre o mar, chuva, chuva. Portuga aborrecia-se às vezes, ao abrir a janela e dar com aquele insosso no ar, aquela indecisão meteorológica. Preferia mesmo o calor agudo que fazia afluírem à praia os mais diversos e inesperados objetos de desejo, as roupas de banho fugidias, as bênçãos da natureza mais fulgurantemente manifestadas.

Não revelou onde se hospedava, bancou o distraído. Fez muita questão de não saber o número do próprio telefone, independência absoluta para procurar quem melhor lhe apetecesse. Descontadas as longas horas de trabalho, o seu tempo apequenava-se para o ofício de farejar as alegrias que lhe poderiam sorrir...

Não demorou muito e já um mar de boa poesia – escolhida a dedo – derramava-se pontualmente na sua caixa de entrada, em quantidades muito bem dosadas. Brasuca, uma aficionada, aventurou-se no diálogo: dá-me um português que te dou um brasileiro, todos os grandes poetas a postos para fazer saltar palavras mágicas que se desmanchavam em beijos de bom dia, boa tarde, boa noite. Portuga foi lagarteando, lagarteando pelas estrofes alheias até deixar ao sol obras mais, digamos, convidativas, que sua habilidade de veterano ministrava com a paciência de um homeopata. E Brasuca tinha muito espaço para recebê-las, enrolava-se nelas, abria-se àquele vento bom de viver, sem pressentir nuvens.

Até Portuga acostumou-se, de certo modo, ao lirismo que ele próprio suscitou. Tecnologia à parte, as correspondências lembravam aquelas missivas que se trocavam por navio, meses e meses para chegar, em papéis amarelecidos ou perfumados. Brasuca acordava feliz e enlanguescida como uma ninfa saída dum bosque shakespeariano, a admirar-se em espelhos d’água e desembaraçar os cabelos ao som de gorjeios. Qual é o lado da cama em que dormes?, encantou-a ao perguntar. Do esquerdo... Então vou deitar-me do outro lado. Uma noite, cansado, encontrou pachorra para perguntar, tens colo para eu poder dormir? Trêmula, rendida, a desavisada confessou-lhe que sim, sim, tinha o colo há muito guardado...

(Guardado? Que coisa mais estranha...)

Assim que tiver minha sala, ligo-te. Esperança ou sentença?, pensou, enquanto a alma emudecia. E a gente pensa que distância é uma questão de oceano. Sentiu uns espetões, tentou se ajeitar no corpo para enganar um medinho besta que lhe punha a língua, boba, boba. Ora, afinal acabou de chegar, tem tempo, diluía-se em desculpas para tentar fazer dormir o boi de dentro, que não pregava olho, desconfiado não sei de quê.

Portuga seguia a rotina do calçadão, sem camisa, arriscando a desacostumada brancura por qualquer corzinha com assinatura tropical. Bermuda comprida, chinelos, o cabelo desalinhado aloirando-se a cada dia, um olhar pequeno e desentendido que não perdia um detalhe sequer. Não fosse o insólito hábito de coçar as partes quase por reflexo - o que decerto encabulava, ainda que ele não o sentisse - dir-se-ia até que era um rapaz agradável.

Não vens dar-me as boas vindas à tua terra? Entre poemas, contou que ia a trabalho, era para logo. Mas tão longe dela, esse país é muito grande... Não sei se te disse, mas já tenho saudades de ti. Achou aquilo lindo, quase tão lindo quanto o telefonema surpresa, só para ouvir a tua voz, alguns dias depois.

Ainda assim, Brasuca hesitava. Pensou na distância, nas despesas, na concorrência desleal da carne mais fresca, que sempre sobra em todo lugar.

(Continua)

Um comentário:

Anônimo disse...

Em vez de um terramoto,
Temos que esperar um stunami lol ;))