com que nos incendeia os dias
Copacabana, de manhã - Foto: David J
acordarei entre os teus braços.
de longe os olhos se viciam
inventam
a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
Caiu mal por dentro aquele plural indefinido, raiva e ciúmes já temperados na desconfiança. Portuga fez-se de ofendido, Brasuca amargurou-se na distância, nunca consigo ligar, por que será? A dor de já saber o que não se sabe. Forçou-se a um silêncio digno, muitos muitos dias, a alma gotejava.
um dia, quando a chuva secar na memória,
quando o inverno for tão distante,
Novembro já no fim, um diante do outro sob o mormaço, vidas e vidas se encontram na praia, ao sabor da caminhada, Portuga ensolarado, alegria e dois dedos de conversa, não ligou, ah mas tive de viajar, voltei, pois é, olha, sábado saio mais cedo, nos vemos, sim comemos qualquer coisa por aí, eu ligo, tá bem
quando o frio responder com a voz arrastada de um velho,
oito e meia, nove horas, nove e meia, dez, reticências... Mensagem de texto às dez e meia, para o caso de algum imprevisto. Estranhou porque ele sempre respondia, dessa vez não, olho comprido no telefone - e ora, paciência!, é engolir no sono essa noite fervida e requentada.
estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela.
cada osso do corpo incomodava, talvez fosse assim se um trator passasse por cima da gente, se pudesse não ter ouvido aquela voz feminina amanhecendo do outro lado da linha, diz-me em que lado da cama dormes que vou deitar do outro, também quem mandou esquecer que lá não tinha horário de verão, um momento por favor, um oceano até Portuga despertar das profundezas e morrer em nervosos monossílabos, não posso dormir com quem não tenho intimidade, poucas palavras humilhadas e depois os emails a esfaquearem as lembranças, Portuga explodido em fúria com todas as suas faces contundentes, Brasuca jurou que não ia ler as palavras não medidas devastando implacavelmente as papoulas da sua ternura, e depois o vácuo.
sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha,
Só no dia seguinte é que achou os emails desmaiados na sua caixa. Um Portuga aflito, novidade para ela. Não consigo ligar, chama até cair, não estás em casa, não estás na net, espero até meia-noite depois vou-me embora, não sei que fazer...
Foi demais para um novembro inteiro a equilibrar-se na incerteza. Brasuca desatinou, destravaram-se as águas do fundo, maremotos e cataclismos se revezaram nas veias durante horas, derrubaram as cercas do dia seguinte e invadiram dezembro com toda força.
porque eu acordarei nos teus braços
e não direi nem uma palavra,
Não, não foi bem assim, pensou Brasuca entre uns bons bocejos, quando se deparou de novo com o poema do José Luís Peixoto – justo esse! – a bailar no meio do livro que acabara de abrir, presente do Portuga por correio aéreo. Acho que, pensando bem, eu mudava um pouco isso... me perdoa, Zé, ousou rindo, a intimidade do tratamento garantida em nome do amor às palavras. Pensou e revolveu-se um pouco mais na cama, o dia recém-amanhecido preguiçoso que só, espiando entre as cortinas entreabertas.
nem o príncipio de uma palavra,
Portuga encontrou o postal logo que abriu a caixa de correspondência e regalou-se com a bem-humorada visão de uns bons pares de derrières bem brasileiros rebrilhando ao sol, sob a escassa moldura dos biquínis coloridos, objeto de cobiça de mais de um cronista laureado – e de pobres mortais fadados, como ele, a cultivar invernos europeus com os olhos pendurados na memória de alguma praia tropical. Adorei o livro, obrigada, sorria Brasuca, e o sorriso dela ocupava mais espaço que a sugestiva fotografia da frente. Portuga até estranhou, mas o fato é que era assim.
para não estragar
a perfeição da felicidade.
(José Luís Peixoto, Um dia)
Um comentário:
"As palavras são, tantas vezes, feitas daquilo que que significamos.E somos o vento,os caminhos do vento sobre os rostos.O vento dentro da escuridão como o único objecto que pode ser tocado.Debaixo da pele, envolvemos as memórias, as ideias,a esperança e o desencanto"
J.L.P
in
Antídoto
:))
Postar um comentário